Crítica
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Sinopse
Um ator fracassado de 40 anos decide organizar o primeiro protesto francês pela causa negra. Porém, ele está bastante hesitante entre o desejo de ter holofotes e um engajamento militante genuíno.
Crítica
“É para olhar para a câmera”?, pergunta o personagem principal. “Olho para cá”?, ele confirma antes de começar a falar. A pergunta adquire uma graça particular quando se percebe que este homem é Jean-Pascal Zadi, também diretor de A Grande Marcha. Junto de John Wax, ele se coloca em cena no papel de um ator de 38 anos de idade, organizando uma marcha pelos direitos dos negros na França. Embora mantenha seu nome real e atue da maneira mais despojada possível, ele cria uma persona desengonçada e patética, encontrando-se com artistas negros famosos em busca de conselhos para a manifestação. Através do mecanismo do falso documentário cômico (o mockumentary), permite que seu personagem fictício – o protótipo do fracasso e da ingenuidade – se confronte a conceitos reais sobre as desigualdades no país hexagonal. O criador decide acentuar o caráter desajustado de JP para provocar reações ainda maiores do interlocutor, ou seja, ele reforça a agressividade para motivar respostas igualmente fortes.
O procedimento não é novo: a figura do personagem-clown, ridicularizando a si próprio para abordar temas sérios remete às produções de Sacha Baron Cohen (Borat, 2006, Brüno, 2009), enquanto a figura do diretor-protagonista, colocando-se como motor de provocações lembra o cinema de cunho sensacionalista de Michael Moore e Morgan Spurlock. A principal vantagem destes documentários e ficções cômicas se encontra na abertura ao acaso: os anti-heróis supostamente se confrontam a pessoas em situações verídicas, agindo de modo inesperado diante das câmeras. No meio do caminho entre a pegadinha e o cinema militante, corajoso a ponto de provocar os poderosos, o documentário ficcionalizado se tornou uma das formas mais acessíveis ao público médio dentro do gênero. Zadi explora essa vertente, reunindo-se com dezenas de humoristas, atores e diretores negros franceses para pedir apoio à pretensa manifestação. O ponto de partida assume sua farsa: sem organizar sites, páginas nas redes sociais, cartazes ou qualquer dispositivo de ordem prática, a marcha se torna mera desculpa para uma sucessão tenuemente interconectada de esquetes envolvendo personalidades a respeito da representação negra na mídia e nas artes.
Politicamente, o resultado se torna corrosivo pela abordagem frontal de temas que, segundo o bom senso, exigiram tato. Entre risos e tapas, Zadi provoca Éric Judor por suas origens brancas e negras, Ramzy Bedia pela origem negra e árabe, Omar Sy por ter se “vendido” a Hollywood, Fabrice Éboué pelas piadas sobre negros com pênis enormes, e Claudia Tagbo pela paródia de mulheres africanas. Ele ridiculariza Mathieu Kassovitz, autor branco de um filme sobre a periferia (O Ódio, 1995), e o diretor negro Lucien Jean-Baptiste pelas comédias em que personagens negros servem para o riso condescendente dos brancos (La Première Étoile, 2009). Sobretudo, expõe a si mesmo enquanto polemista cujos vídeos no YouTube raramente encontram sucesso e dotado de talento limitado para as artes dramáticas, além de dentes “que não cabem na boca”. Estas pessoas oferecem seus corpos, rostos e nomes ao jogo, acatando a releitura feroz de seus trabalhos. A Grande Marcha passa como um rolo compressor por questões de integração racial, religião, colorismo, feminismo negro, palmitagem, erotização, sucesso entre brancos, africanismo, eurocentrismo, o “negro Oreo” (negro por fora, branco por dentro) etc. Cada encontro desperta uma destas reflexões, filmada por uma câmera próxima, em posicionamento equivalente ao olhar cúmplice do espectador, junto ao qual Zadi e os convidados constrangidos se viram, em pedido silencioso de socorro.
Enquanto discussão lúdica sobre a negritude contemporânea, o resultado atinge um registro hilário. Apesar das sugestões agressivas (o artista negro posando com uma banana, o outro que quer ser chamado de “negão”, o terceiro que jamais aceitaria um genro negro etc.), a leitura crítica se torna evidente pelo teor absurdo da encenação. Cada vez que Zadi age de maneira irresponsável, ele suscita o desconforto dos colegas, sinal de que o discurso não apoia o ponto de vista limitado do ator – em outras palavras, ele é utilizado enquanto anti-exemplo. O fato de os convidados famosos aceitarem a autoparódia atenua os insultos e humilhações, afinal, eles possuem um roteiro com o qual concordam brincar. Ao contrário das interações promovidas por Sacha Baron Cohen, nunca restam dúvida na comédia francesa quanto ao aspecto roteirizado das cenas, seja pela decupagem fictícia (com plano e contraplano durante uma agressão, por exemplo), seja pelo caráter didático com que cada conversa amigável evolui ao caos. Existe uma diferença fundamental entre as duas abordagens: Cohen registra pessoas das quais discorda, e que considera de fato imbecis (o norte-americano conservador, racista e xenófobo). Já Zadi interage com amigos cujo trabalho admira. A ridicularização fica restrita ao território do faz de conta.
Em termos cinematográficos, o resultado não é dos mais refinados: o roteiro esquece o filho de JP durante a narrativa inteira, constrói um ataque policial pouco verossímil, apoia-se em brigas absurdas. O clímax se torna anticlimático (os criadores não sabem resolver o motivo da marcha dos negros), já o recurso dos olhares à câmera, em estilo The Office (2005 - 2013) e Fleabag (2016 - 2019), atinge a saturação. No entanto, a ficção jamais aspira a uma linguagem complexa. Graças ao ponto de vista exclusivo dos personagens negros, atinge um discurso mais complexo do que a constatação do racismo. Ao rirem deles mesmos (e também dos brancos, do show business, da “identidade francesa”), Zadi e Wax propõem aos espectadores o escárnio de si próprios. Desta vez, os negros não são escravos de novelas, traficantes de séries nem colegas dos protagonistas brancos: eles se tornam porta-vozes de suas histórias reais, ainda que exageradas para finalidade cômica. São pessoas bem-sucedidas, educadas, produtoras de arte, politizadas, porém dotadas de pensamentos divergentes. Diante destas figuras realistas, tanto o espectador negro quanto o branco se confrontam às suas limitações e incoerências dentro de um sistema desigual. Mesmo que a caminhada na Praça da República não porte frutos, o diretor já terá desenvolvido, através de 90 minutos, um desfile audiovisual através das múltiplas configurações da comunidade negra.
Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2020.
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