Crítica
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Sinopse
Desanimado por não alcançar o sonho de tocar no lendário clube de jazz The Blue Note, em Nova Iorque, Joe Gardner, professor de música do ensino fundamental, sofre um incidente e se transporta para fora do próprio corpo. Numa forma fantasmagórica, ele será levado a aprender o necessário para retomar a vida e ser feliz.
Crítica
Quando não está investida nas inúmeras sequências que se tornaram o foco da Disney (Toy Story 4, 2019, Carros 3, 2017, Procurando Dory, 2016), a Pixar abraça desafios consideráveis dentro da linguagem da animação. Na prática, o projeto de Divertida Mente (2015) deve ter parecido dificílimo de vender ao público familiar alguns anos atrás: como abordar a psique humana, representando sentimentos em versão humanizada e destacando os valores tanto da lembrança quanto do esquecimento? Agora, o diretor Pete Docter dá um passo adiante ao investigar os limites entre corpo e alma. Em que circunstâncias nosso espírito se dissocia do corpo, para além da morte? As experiências diante de uma bela música seriam suficientes para elevar a alma? Como ilustrar a essência de pessoas “perdidas” (traumatizadas, abandonadas, depressivas)? Enquanto Up: Altas Aventuras (2009) apostava no melodrama familiar e Divertida Mente mergulhava na psicologia, Soul envereda pela filosofia, questionando o sentido da vida e nosso propósito na Terra. Pelo caminho, apresenta Carl Jung, Maria Antonieta, Muhammad Ali e Madre Teresa.
O roteiro supera armadilhas consideráveis. Primeiro, não fere os princípios de nenhuma religião em particular ao abordar a morte. Os estúdios têm adotado impressionante cautela ao ocultarem o conflito de sobrenatural do herói, o músico Joe Gardner (Jamie Foxx), o que ocorre nos primeiros minutos. Embora a palavra “morte” seja utilizada algumas vezes, os criadores borram os limites desta jornada: ele se encontraria num limbo, na fase de transição, no paraíso, purgatório? Espectadores de crenças distintas podem se identificar com a complexa viagem através de uma noção universal de transcendentalidade, que não adentra nenhuma fé em especial. Existe gesto político mais relevante nos nossos dias do que conceber todas as crenças como igualmente válidas? As almas se tornam equivalentes neste espaço imaterial (ou seja, somos todos iguais em nossa essência), enquanto preservam características de origem (existem asiáticos, nórdicos, latinos e outras identidades cujos traços são impressos na fisionomia). Respeita-se a especificidade das culturas ao passo que se valoriza uma noção vasta de ser humano.
Em paralelo, a Pixar começa a contornar vícios que vinha desenvolvendo até então. Docter acredita no desenvolvimento uma obra infantil de ritmo contemplativo, dotada de pouquíssimas cenas de perseguição. As cores vivas dos filmes anteriores estão ausentes nesta obra azulada (a cor predominante das figuras sem corpo). Joe e a amiga 22 (Tina Fey), uma alma encontrada no plano espiritual, não encontram qualquer vilão no caminho – o que afasta os animadores da obsessão por transformar companheiros em adversários como fator surpresa. Os autores evitam a figura do interesse amoroso, do melhor amigo na Terra, e mesmo da necessidade de reunião familiar. Joe deseja voltar ao mundo material pelo sonho de tocar numa renomada banda de jazz. Os conceitos de “jam”, da “zona” de êxtase musical e de “fluxo” artístico são apresentados às crianças sem facilitadores didáticos. Os personagens sequer tropeçam e caem, mudam de cor ou incorporam qualquer ornamento estético para agradar aos pequenos. Com exceção de uma troca temporária de corpos, a narrativa deseja provar à indústria a capacidade de cativar o espectador através de ferramentas avessas ao pop, ao colorido e ao ritmo frenético da virtualidade contemporânea.
Soul desenvolve de maneira eficaz a amizade improvável entre o professor e uma figura sem idade nem rosto, sem gênero nem corpo (outro posicionamento político progressista, cabe ressaltar). O elenco composto por Jamie Foxx, Tina Fey, Richard Ayoade, a brasileira Alice Braga, Graham Norton e Angela Bassett se vê livre da obrigação de reforçar piadas – aliás, há poucos trocadilhos e comicidades fáceis no texto. Embora interpretem personagens animados, eles adotam o tom típico do drama em live-action. O diretor atenua a carga sentimental esperada da premissa, privilegiando a meditação etérea sobre si mesmo. Os animadores impressionam pelos detalhes na representação musical (a agilidade das mãos ao piano é deslumbrante), e pela alternância entre o naturalista e o cartunesco, apostando no abstrato quando lhe convém. Neste aspecto, a representação do além praticamente repete o universo psíquico de Divertida Mente: a descoberta de cenários no plano espiritual possui traços parecidos demais com os “cômodos” mentais do filme de 2015. Os conselheiros chamados Jerry, de traços cubistas, e as formas arredondadas das almas soam diretamente extraídas da sala de controle na cabeça da jovem Riley.
O diferencial, neste caso, se encontra no fato de que nenhum personagem coadjuvante no filme de 2020 possui a força de Bing Bong, e que Joe e 22 atravessam guinadas menos expressivas do que os heróis da produção anterior. A busca pelas sensações em oposição à materialidade recorre às ferramentas de Divertida Mente com igual competência técnica, porém menor impacto devido à perda do fator novidade. A Pixar sustenta o alto nível, porém repetindo ousadias precedentes – o que, por definição, resulta num produto menos ousado. Docter, a Pixar e a Disney operam num espectro confortável dentro dos parâmetros da “animação de arte” estabelecidos por eles mesmos, visando tanto o sucesso popular quanto o aval dos críticos. Enquanto dispara alguns diálogos explicativos demais para o refinamento esperado destes artistas (“Você me mostrou o que era propósito e paixão”), o drama sugere que nosso papel na vida supera a função pragmática (o impacto de nosso trabalho, por exemplo) e os traços que deixaremos na comunidade. Ao se concentrar no valor da satisfação pessoal, Soul atinge um efeito singelo, menos extravagante do que as aventuras anteriores.
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