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Crítica


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Sinopse

Jamie é um adolescente que vive sozinho, procurando pequenos bicos para ganhar dinheiro, aproveitando festas e consumindo drogas. Ele também tem um filho pequeno para cuidar. Quando conhece Corey, namorada de seu melhor amigo, se apaixona perdidamente pela garota rebelde. À medida que investe no amor proibido, Jamie percebe que as ruas da cidade se tornaram palco de violentos protestos contra o Estado.

Crítica

Pode levar algum tempo até se compreender de fato quem são os protagonistas deste filme, onde eles se encontram, porque agem desta maneira, e quem seria o narrador falando em japonês. Soul of a Beast (2021) mergulha o espectador num universo frenético, desprovido de apresentações ou explicações. A imagem se abre no incomum formato 1 x 1:33, ou seja, próximo do quadrado e do formato das televisões antigas; enquanto a câmera se agita nervosamente por todos os lados, gira o eixo, efetua zooms in e out. A trilha sonora acompanha dois adolescentes atravessando o farol vermelho pelo prazer de fazê-lo, com os olhos fechados, disparando gritos de alegria sobrepostos à trilha sonora pop, à narração literária, aos ruídos da cidade. O filme suíço enxerga a juventude contemporânea pelo prisma de uma avalanche de estímulos altos e chamativos. Por isso, o encadeamento se ideias remete aos jovens acessando seus telefones celulares, deslizando o dedo pela linha do tempo das redes sociais antes de mudarem para outra rede, voltarem à anterior, ligarem a televisão e o computador ao mesmo tempo. A atenção se divide entre tantos focos que os personagens, e por consequência, o público, se tornam incapazes de refletir calmamente sobre qualquer tema à sua frente. A narrativa aposta num ritmo, digamos, estroboscópico.

A montagem efetua uma quantidade impensável de cortes dentro de cenas simples, seja por vaidade (o poder de fazê-lo) ou medo do silêncio e da estagnação. Um simples gesto de Corey (Ella Rumpf) ao passar as mãos no cabelo se fragmenta em cinco planos diferentes, por ângulos levemente distintos. Vale apostar que pelo menos metade dos planos deste longa-metragem possua duração inferior a um segundo: cada piscada de olhos introduz uma imagem nova, a exemplo de uma sucessão veloz de slides. Quantas câmeras, ou quantos takes por cena foram necessários até atingir o efeito caleidoscópico? De certo modo, a iniciativa busca carregar valor em si própria, enquanto recurso retórico: seria impossível prestar atenção a cada detalhe, ou contemplar os dilemas com calma. A história avança numa viagem de ácido ininterrupta, frenética e puramente sensorial – de fato, os adolescentes consomem bastante drogas neste percurso. A atitude vaidosa da direção, chamando atenção excessiva a si própria, ao menos condiz com a galeria de personagens inconsequentes e impulsivos. Eles fazem planos de fuga para outro país, abandonam seus bebês no apartamento, se apaixonam e desapaixonam em fração de segundos. A vida se intensifica no sentido epidérmico do conceito, embora impeça a experiência dos processos, da passagem do tempo. Talvez os heróis tenham tanto medo de envelhecer que se lançam num hedonismo profundo, arriscando-se nos carros, nas bicicletas e nas jaulas de animais ferozes do zoológico.

Soul of a Beast propõe um retorno ao cinema de sexo, drogas e crimes na adolescência, nos moldes consagrados por Kids (1995) e Trainspotting: Sem Limites (1996). Como se a intimidade destes personagens bêbados e drogados não fosse agitada o bastante, o roteiro insere Corey, Jamie (Art Bllaca) e Joel (Tonatiuh Radzi) numa convulsão social quando inúmeros protestos nas ruas motivam um violento toque de recolher. O filme se aproxima da distopia onde a rebeldia dos jovens constitui uma afronta ao sistema opressor. Eles ultrapassam terrenos proibidos, correm por cima dos carros, participam de festas clandestinas. O diretor Lorenz Merz sustenta a impressão de que o mundo está acabando, então por que se preocupar com o futuro, certo? O trio ocupa um eterno presente, importando-se unicamente o gozo. Pelo menos, o filho pequeno de Jamie é comportado até demais, e nunca desperta problemas ao pai adolescente. Nota-se a conivência com os jovens a partir do instante em que os conflitos externos (o bebê para criar, a rejeição da família, a falta de emprego) perdem a urgência: a irmã rica da mãe da criança aparece com frequência para dar dinheiro, e os familiares desaparecem quando se tornam dispensáveis à trama. Para tudo dá-se um jeito, sugere o autor. Provavelmente temendo a abordagem moralista caso oferecesse obstáculos profundos no caminho dos três, o diretor opta pela clemência, deixando que a conduta deles possua consequência ínfima e tardia.

A principal metáfora oferecida para representar os heróis se encontra na figura dos animais selvagens que escapam do zoológico (porque Corey, Jamie e Joel abriram as jaulas). A sociedade teme a presença de pumas incontroláveis pelas ruas, enquanto procura por uma girafa curiosamente desaparecida – ora, como um animal deste tamanho passaria despercebido? No entanto, os bichos simbolizam o caráter descontrolado e irracional dos amigos-amantes, espalhando-se pelas ruas até a inevitável restrição às normas. Conforme estas criaturas invadem a trama, a fantasia se faz frequente e grandiosa – o cineasta está longe de uma abordagem sutil. Uma pequena rachadura na parede do apartamento poderia simbolizar o colapso nas estruturas ao redor de Jamie, porém os efeitos visuais propõem rachaduras gigantescas, ilustrando um prédio prestes a se dividir em dois. A introdução em japonês se encarrega de trazer reflexões distanciadas, provindas de uma cultura distante, mas o filme vai além, insistindo nas comparações com a trajetória de um samurai munido de uma espada afiada e com os cabelos ao vento. O gosto pelo pop leva a obra a abraçar uma colagem ampla de referências e formas de cinema, do drama à ação, ao romance, ao épico e à fantasia, beirando a ficção científica. Existe uma vontade de abraçar todas as linguagens com voracidade equivalente àquela dos protagonistas – portanto, sem recuo nem pausa para a reflexão.

O mérito mais evidente da obra se encontra na direção dos atores, muito confortáveis entre o realismo e a performance. As falas, os olhares perdidos, os corpos desconstruídos respondem com facilidade às demandas da direção. Eles oferecem composições de nível semelhante, mergulhados num universo de efeitos visuais plausíveis (a girafa, o prédio rachado). Infelizmente, retiradas as incontáveis intervenções em pós-produção (a saturação de cores, músicas, ruídos e movimentos de câmera), resta uma representação com pouco a dizer sobre esta juventude perdida, ou ainda sobre sua relação com as classes ricas e egocêntricas (vide a performance da mãe de Zoé na festa de aniversário). Sem uma diferença de percepção entre os jovens extremistas e a própria direção que os observa, o filme se transforma num hino ao encontro inconsequente entre pulsão de vida e morte. O fato de Soul of a Beast remeter com tanta intensidade às obras punk dos anos 1990 diz muito sobre suas forças e fraquezas: por um lado, consegue resgatar um vigor raro no cinema de festivais, acostumado às formas polidas de mise en scène e de montagem; por outro lado, isso já foi feito há décadas, por outros cineastas consagrados. O que a produção de 2021 teria a dizer sobre esta geração específica, as lutas sociais contra o poder do Estado, as novas configurações familiares? Assim como nos videoclipes que inspiram os criadores, o prazer do fluxo de imagens se converte numa finalidade em si mesma.

Filme visto online no Festival Internacional de Locarno, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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