Crítica
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Sinopse
O casamento de Diana com Charles está por um fio. Porém, ela é obrigada a passar o Natal com a família real numa propriedade afastada. Indisposta diante das inúmeras regras do jogo de aparências, Diana entra em profunda crise.
Crítica
A semelhança entre personalidades verídicas representadas no cinema, no teatro ou nas séries de televisão e seus respectivos intérpretes se transformou numa convenção ao longo do tempo. Para muitos realizadores, o fato de um ator ou de uma atriz se parecer evidentemente com o(a) biografado(a) é fundamental para atingir uma fidelidade “necessária”. Mas, será que isso é realmente vital? Pelo sim ou pelo não, frequentemente as cinebiografias partem dessa ideia da semelhança física como uma condição primordial. Tanto que a noção gera outro lugar-comum: a revelação de fotografias das pessoas que inspiraram os personagens, geralmente durante os créditos finais, algo do tipo: "viram como ficou parecido?". O cineasta chileno Pablo Larraín é chegado a retratar episódios e/ou figuras factuais que desempenharam papeis importantes/destacáveis na História. Ele demonstrou isso ao emprestar da realidade peças essenciais da luta progressista contra a ditadura chilena em No (2012). Igualmente se voltou ao passado com essa pegada, a fim de falar de fascismo e resistência a partir da perseguição ao poeta Pablo Neruda, em Neruda (2016). Mas, Spencer, sua nova empreitada internacional, tem Jackie (2016) como obra-irmã. Primeiro, porque ambos tratam de mulheres proeminentes que são engolidas pelas preconcepções de suas imagens públicas. Segundo, porque assim como Natalie Portman não parece uma escolha óbvia para viver a primeira-dama dos Estados Unidos Jacqueline Kennedy, tampouco Kristen Stewart é uma opção evidente para viver a popular e sofrida Princesa Diana.
Ambas as atrizes não são “escolhas óbvias” dentro desse clichê da “necessidade” da perceptível semelhança física. No entanto, ao longo dos processos, elas acabam se parecendo efetivamente com as suas personalidades condenadas a viver à sombra de homens destinados a liderar nações e reinos. É como se as personas artísticas se fundissem às históricas num processo de mimese que vai quebrando as nossas desconfianças iniciais condicionadas pelo senso comum. Pablo Larraín aproxima a realidade e a fábula, garantindo que as protagonistas improváveis se assemelhem a Jackie e Lady Di. O mais curioso em Spencer é que o cineasta chileno utiliza vários expedientes do cinema de horror. E eles servem para construir a angústia asfixiante de alguém que não suporta viver sob inúmeros protocolos e agendamentos. A burocracia é escancarada na rima visual entre os militares marchando em formação ao carregar caixas de conteúdo desconhecido e a equipe encarregada das refeições da família real britânica igualmente num passo cadenciado. Enquanto homens e mulheres avançam ritmadamente, adiante conduzidos na cozinha por um homem semelhante a um general, Diana (Kristen Stewart) dirige em alta velocidade pelos campos verdejantes fotografados como se fossem molduras de uma força indomada. Aliás, este é um dos grandes efeitos de Larraín: transformar a produção num insuspeito conto de horror ambientado na nobreza. Ele evoca o aspecto intangível por meio de uma atmosfera ora etérea, ora feroz. O impulso vem dos panoramas mentais da sua protagonista à beira do abismo.
Kristen Stewart vive uma Princesa Diana mantida em ininterrupto estado de crise. A atriz norte-americana tem um desempenho notável, por meio do qual manifesta os pesares e as dúvidas de alguém sofrendo num estágio caótico de inadequação. Pensando em prêmios, não seria nenhum absurdo apostar em Stewart no topo das listas de favoritas na próxima temporada de estatuetas. Voltando aos contornos do horror em Spencer, eles são utilizados habilmente para projetar a imaginação do que teria sido, para Diana, um Natal em família quando seu casamento já se encontrava completamente falido. Larraín insere nessa lógica evidentemente shakespeariana das intrigas palacianas: um casarão abandonado (onde moram os fantasmas da infância da protagonista); um espantalho literal e simbolicamente posicionado entre a ruína dos Spencer e a glória inefável dos Windsor; o “espírito” de Ana Bolena, personagem histórica com quem Diana se identifica inclusive na tragédia. E ele marca esse pesadelo com uma trilha sonora pesarosa. Em vários instantes fica difícil identificar os limites entre a realidade que circunda a Princesa de Gales e a sua perspectiva muito íntima (deturpada) de um infortúnio no seio da realeza. Aliás, os homens e mulheres de “sangue azul” são encarados especificamente na trama, chegando a ser percebidos como pano de fundo borrado (como convém aos fantasmas e monstros) para o desespero da menina que não consegue sequer um minuto de sossego na vida.
Especialmente na primeira metade de Spencer, os abastados nascidos na realeza são citados como “eles”, numa demonstração de respeito por parte da criadagem – afinal, habitam “outro mundo” –, e como um sintoma de um antagonismo à Diana – se tornando uma ameaça velada. O excelente roteiro a cargo de Steven Knight pontua que Lady Di tem lapsos de apaziguamento e/ou conforto apenas na companhia dos filhos pequenos e dos empregados. Como mãe, é vista tentando a todo custo proteger os meninos da tradição que ameaça transforma-los em símbolos desumanizados. Como mulher, Diana é alvo da compaixão dos plebeus que a servem diariamente. O cozinheiro Darren (o notável Sean Harris) é fundamental nessa brigada que protege a princesa tida como problemática, mas que é comprometida violentamente por sua fragilidade. Os manjares e as delícias propiciam, também, a abordagem dos notórios distúrbios alimentares que acometeram Lady Di. “Vamos fazer com que Diana deseje algo nesta noite”, diz o chef demonstrando uma compreensão enorme do cenário emocional. Outro essencial é o Major Gregory (Timothy Spall), incialmente um tipo que pode ser encaixado ali como um leão-de-chácara desalmado, mas que age nas sombras em prol de algo bom. Por fim, Maggie (Sally Hawkins) é a confidente que demonstra toda a compreensão do mundo pela menina assustada que se debate incessantemente contra a existência meramente simbólica num universo falso.
Bem como tinha feito em Jackie, Pablo Larraín desenvolve uma especulação do que teria acontecido com Diana, neste caso, nas festividades natalinas com os Windsor. Não há garantias de que as coisas tenham remotamente sido daquele jeito. O chileno trabalha com uma subjetividade e uma leitura imaginadas pelo roteiro a partir de tudo o que foi falado e reportado durante a crise que Diana instaurou na família real britânica por sua inadequação a um cotidiano aparentemente de sonhos. Também não há garantias de que, por exemplo, Diana tenha realmente visto a rival pelo amor do Príncipe Charles na saída da missa. Spencer alimenta com particular perspicácia a incerteza sutil entre os mundos materiais e imateriais, entre as verdades, as versões, as perspectivas e as elucubrações. Por isso, em determinados momentos a família real é desenhada quase como se seus membros fossem vampiros seculares se alimentando da juventude e da fama da “Princesa do Povo”. Há um mergulho profundo numa psiquê fraturada e nas (in)certezas deturpadas por anos de inquietude e melancolia. Diana não queria ser um modelo de vestidos (por isso a sua rebeldia ao se trajar), nem ansiava por ser alguém maior do que a vida (por isso a indignação diante das impossibilidades de viver certas banalidades). Talvez por ser tão intimamente resistente ao endeusamento à realeza, ela era amada pelo povo. E Larraín novamente se aproxima sensivelmente de uma mulher cujo destino imediato era ficar à sombra de um homem honorável. Mas, Diana não tem a capacidade de Jacqueline de se adaptar ao meio para sobreviver às lógicas de um mundo grotesco. Por isso sua vida se torna um filme de terror, dentro do qual ser princesa está longe do "felizes para sempre" dos contos de fada e o príncipe é desencantado.
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