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Sinopse
Um diário de Abel Ferrara a partir de fevereiro de 2020, antes do mundo ser enclausurado pela pandemia do Covid-19, quando da apresentação do seu mais recente longa, Sibéria, no Festival de Berlim.
Crítica
Sportin’ Life é um documentário autobiográfico nada ortodoxo. Nele, o cineasta Abel Ferrara se radiografa abertamente, num desconcertante esforço cinematográfico de revelar-se longe das convenções. Ademais, percebe a dura realidade do presente. Tendo ao seu lado o colaborador de longa data e amigo Willem Dafoe, associa temas e recortes aparentemente díspares ou ao menos superficialmente incompatíveis. Numa cena satisfaz a curiosidade do repórter quanto àquilo – “é um documentário sobre como fazer um documentário” –, para logo depois apresentar-se alegremente no palco, tocando sua guitarra. Aos poucos, passada a fase de aclimatação com esse aparente caos reinante, percebe-se que Ferrara está costurando elementos que lhe são caros. Fazendo um paralelo com um deles, a religiosidade, o autor de O Assassino da Furadeira (1979), O Rei de Nova York (1990) e Vício Frenético (1992), para citar apenas três exemplares de uma carreira vasta e rica, segue o preceito de escrever certo por linhas tortas. Iconoclasta, refuta a vulgaridade para falar de si.
Essa colcha de retalhos contém de trechos de produções emblemáticas de Ferrara, passando pelas bonitas demonstrações de admiração por Pier Paolo Pasolini e chegando à intrusão frequente dos efeitos da pandemia da Covid-19. Assim, o cineasta raciocina tendo em vista a carreira e a intimidade, não deixando de demonstrar preocupação com o aspecto coletivo do mundo. Justo ele que frequentemente mergulhou em universos soturnos, feitos de homens solitários. Sportin’ Life esclarece nas entrelinhas a relação do autor com suas paixões complementares pela música e pelo cinema. Para ele, ambas as artes são predominantemente rítmicas, ditadas pelo compasso. Dafoe, por sua vez, não vira somente um espectador privilegiado. Principalmente por dar espaço para o ator falar do seu processo, Ferrara conclui formalmente a tese de que o trabalho de ambos é interdependente. Ao dirigir, também se coloca num espaço de intérprete. Já o astro, de modo semelhante, embora num lugar distinto, também exerce uma função diretiva, ampliando o vasto terreno de criação que lhe é dado. Essa cumplicidade exala genuinidade exatamente porque é consolidada pela disposição narrativa.
Outro indício de que Abel Ferrara expõe-se profundamente em Sportin’ Life é a inclusão dos vislumbres da pequena Anna Ferrara, filha e atriz em seus dois longas ficcionais mais recentes – Tommaso (2019) e Sibéria (2020). Distante da imagem sombria que pode projetar a partir de seus personagens irascíveis, o homem demonstra um olhar bastante cálido e afetuoso à pequena, novamente deixando-se ver. Aliás, embora não insistentemente verbalizada, a noção de que cinema/música também é família se desprende da participação da esposa/atriz Cristina Chiriac e mesmo da maneira como Dafoe e os integrantes da banda de Ferrara são encarados. A incursão dessa trupe pelo Festival de Berlim 2020, onde Sibéria foi exibido pela primeira vez, é uma desculpa para inserir nesse painel os bastidores do circo cinematográfico, parte indissociável da rotina de quase todos os agentes da Sétima Arte. A passagem espirituosa fica por conta da provocativa reprodução da cena do filme novo, depois dela ser citada por um crítico contrariado ao ponto de abandonar a première.
A engrenagem mais aparentemente desconexa de Sportin’ Life é a reflexão sobre o coronavírus. No entanto, partindo da percepção de que o filme se trata de uma autobiografia essencialmente livre de amarras, tanto que nega qualquer estabelecimento de progressão cronológica e/ou dramática, é possível perceber que Ferrara não está meditando como uma ilha. Ao seu redor, além das influências, das obsessões e dos laços afetivos, circulam componentes sociais de uma contemporaneidade marcada pela pandemia, estado que força mudança (ainda que circunstanciais) de paradigmas. Assim, numa operação cinematográfica incomum, o cineasta tenta encontrar espaço no tempo de agora, evitando mexer demasiadamente no passado, a não ser por meio do cinema. Debaixo da casca de aleatoriedade, da suposta displicência na consecução de vieses e na ilustração de alguns instantes-chave, está uma ponderação pessoal e sóbria. Abel Ferrara não se preocupa com primados estéticos, misturando caoticamente texturas e suportes. Nada a ver com soar profundo, mas com transparecer.
Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 7 |
Chico Fireman | 6 |
Ailton Monteiro | 8 |
Alysson Oliveira | 7 |
Leonardo Ribeiro | 7 |
MÉDIA | 7 |
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