Crítica


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Sinopse

Renée volta para sua casa após muito tempo de ausência. Seu irmão Modeste e a cunhada Eleonore cuidam de sua filha como se ela fosse deles. A pequena Atena agora será obrigada a tentar entender toda essa situação.

Crítica

A primeira cena de St. Anne (2021) é deslumbrante. Em tela de formato próximo ao quadrado (janela 1 : 1.66), uma figura humana distante, em plano geral, se desloca pela planície perto de um lago. É impossível determinar a identidade desta pessoa ou compreender suas motivações. No entanto, a imagem, semelhante a uma pintura, conserva uma aura de mistério, seja pelo tempo dilatado (ficamos esperando que algum conflito ocorra naquele cenário), seja pelas nuvens escuras, ou ainda pelo silêncio profundo. Seria possível descrever neste texto a sinopse oficial, porém ela importa muito pouco à diretora Rhayne Vermette, que começa a traçar um ínfimo sinal de linearidade narrativa após 40 minutos (num filme de 80 minutos no total). Caso a autora o desejasse, ela poderia estipular claramente um protagonista, acompanhá-lo e apresentar o seu conflito. No entanto, o projeto foge às ambições típicas do cinema narrativo. Aqui, as imagens não se desenvolvem para a história, e sim apesar dela. O roteiro aparenta ser uma concessão necessária para que a obra possua a mínima estrutura capaz de ser acompanhada do início ao fim. Para a diretora, entretanto, o prazer decorre da criação de texturas e ambientações.

Para o espectador habituado às narrativas convencionais, com começo, meio e fim, pode ser desestabilizador se deparar com um projeto como este. Primeiro, porque o rosto e o corpo humanos não constituem a prioridade. Eles existem, é claro, e conversam entre si ocasionalmente. No entanto, as falas nem sempre soam acessíveis ao espectador por discorrerem sobre temas distantes, como piadas internas que ignoramos. Em contrapartida, a câmera prefere se focar nas franjas de um casaco de inverno, nas portas de madeira das casas, nas luzes de um carro atravessando a estrada, além de flashes de luz e fragmentos de película deteriorada. Os seres humanos se tornam objetos de decoração, ou talvez seja melhor dizer, eles se convertem em elementos estéticos tão importantes quanto os objetos sobre a mesa. Estamos próximos do cinema experimental, formalista e conceitual, onde a impressão de um ato interessa mais do que o ato em si. Por esta razão, as vozes são dissociadas de quem as pronuncia: na maior parte das cenas em que existe alguma forma de conversa, escutamos falas incondizentes com as bocas fechadas dos familiares. As narrações evocam passagens que não vimos: o sumiço de uma mulher, a agressão a um vizinho, a compra de um terreno em Ste. Anne. Esta é uma história na terceira pessoa, em voz indireta.

Deste modo, o filme carrega uma aura fria, assustadora, marcada por falas sem dono, pessoas de costas, vultos e sobreposições. Pela paixão de texturas e ambientações, remete ao belo Antologia da Cidade Fantasma (2019), de Denis Côté, e pela presença de fantasmas que nunca sabemos onde se encontram, nem como se distinguem dos humanos, lembra o brasileiro Todos os Mortos (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra – dois ótimos títulos alternativos para a obra de Vermette, diga-se de passagem. A recusa em organizar os sentidos de maneira clara e linear proporciona outra forma de cinema de horror, onde o desconforto não é causado pela temática, e sim pela estética. Temos a impressão constante de que algo muito ruim pode acontecer à mãe arredia ou à pequena filha esperançosa pelo retorno desta. Neste sentido, a cena final constitui um belo exemplar deste horror experimental: não há mortes nem sangue, porém o enquadramento e o som perturbam os sentidos ao retirarem nossas certezas na hora em que esperamos por alguma forma de resolução. A diretora prefere provocar o espectador a ajudá-lo – em outras palavras, ela opta por lançar novas perguntas, ao invés de fornecer respostas.

Em algum momento, seria necessário que Ste. Anne se tornasse minimamente linear. O primeiro plano de conjunto próximo do convencional ocorre a exatos 50 minutos de narrativa, quando mãe e filha conversam sobre o terreno na cidade que dá nome ao filme. Rumo à conclusão, algumas peças se encaixam em caminhos mais tradicionais: tio e tia brigam pelos cuidados da menina, diálogos expõem a fragilidade das intenções desta mãe quanto aos cuidados da criança. Nestas cenas, infelizmente, o projeto se enfraquece bastante. Os trechos mais ensaiados e roteirizados expõem a fraqueza dos atores: a briga entre a mãe e o tio beira o amadorismo, no mau sentido da palavra. Além disso, o retorno a uma forma mais estruturada de narrativa soa como uma concessão à norma, com a qual a cineasta não se mostra muito confortável. Quanto mais o som se aproxima de seu equivalente em imagens, de maneira sincronizada e organizada, mais o filme perde seu profundo interesse. Afinal, a trama sobre o retorno da mãe e da irmã está longe de constituir o foco da autora, e ela não faz questão de esconder seu desprezo pela psicologia ou história de ambas. Ela privilegia o labirinto de sensações dentro do qual, por acaso, convivem pessoas dotadas de falhas universais.

Ressalvas à parte, Vermette transparece coragem impressionante para um primeiro longa-metragem. Poucos diretores se arriscariam num longa tão fragmentado, assumindo a capacidade de alienar parte considerável do público. Entre a comunicação ampla e o direito de criação livre, ela opta claramente pela liberdade artística. Esta obra pode ser lida enquanto posicionamento político: em tempos de crise de criação e circulação de obras, sobretudo em período de pandemia, a cineasta foge à tentativa de ser ainda mais acessível, preferindo o caminho oposto. Entre tantos filmes disponíveis num festival como Berlim, onde as tentativas gentis e bem-intencionadas se confundem na memória do cinéfilo, esta produção não corre o risco de ser esquecida, nem misturada com outras. Há confiança e mesmo certa violência (no melhor sentido do termo) na maneira como a diretora se impõe, cena após cena. Jamais conheceremos os personagens, porém Vermette possui a coragem de ignorá-los enquanto tais: seus verdadeiros protagonistas serão as luzes, as texturas, os volumes, os efeitos de montagem. Para representar a neve branca, ela prefere superexpor a cena até o branco total invadir a tela. A diretora pensa o cotidiano por caminhos obtusos, e por isso mesmo, dignos de nossa atenção.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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