Crítica
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Sinopse
Suçuarana conta a história de Dora, que percorre as estradas de uma região mineradora em busca de trabalho e de um pedaço de terra que pertenceu à sua mãe. Após um acidente de carro, encontra um cachorro que havia cuidado e abandonado, e o animal a guia até uma aldeia que parece estar afastada do mundo, onde ainda existe afeto e coletividade. Premiado no 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2024).
Crítica
Dora pode até pensar não ter lugar no mundo, mas a verdade é que a estrada sem fim, tanto de onde veio, como para onde vai, tem sido seu lar há mais tempo do que talvez ela própria possa lembrar. O chão lhe pertence, e ficar parada não lhe é uma opção. Os trajetos percorridos ajudaram a formar a mulher que hoje ela é, aquilo tudo que carrega dentro de si e o pouco que esconde em mochilas e sacolas, mal equilibradas entre tantas andanças. Uma rotina tão desregrada, sem apreços ou mesmo qualquer tipo de laços, tem cobrado um preço alto, valor esse que ela recebe com resignação, sabendo que ainda assim é pequeno diante do tanto que um dia imagina lhe será possível reclamar para si. Suçuarana é a busca por uma terra prometida, e se o destino – ou seu desfecho – não é o bastante, estará no processo percorrido o tanto que oferece como retorno. Eis, enfim, um filme de estrada filosófico, um road movie contemporâneo e pessoal, de inegáveis méritos em suas partes, mas digno de um todo ainda mais valoroso e importante. Um conjunto maior do que qualquer soma.
Sinara Teles fez pequenas participações em títulos premiados, como Arábia (2017) ou Marte Um (2022). Sua formação, no entanto, vem do teatro. E entre o muito que já viveu no palco, ela finalmente encontra um desafio à altura de todo esse preparo em Suçuarana. Sua Dora é uma mulher sofrida, que pouco fala, mas que muito diz por meio de olhos cansados e uma resiliência quase inesgotável. O vislumbre desconfiado que lhe dirigem a cada parada, o ato de gentileza que sempre exigirá algo em troca, o favor que nunca lhe é concedido: há mais de uma década ela tem vivido destes pequenos instantes, por vezes ignorados, na maioria dos casos vítimas de um fingimento que dói, mas não diante dos quais não sucumbe. Ela persiste, um passo após o outro, rumo a sabe-se lá onde, nem quando, muito menos por quê.
O que lhe resta é uma foto. E uma promessa. É para lá que se dirige, mesmo sem saber ao certo a precisão dos poucos detalhes que lhe foram herdados. As respostas vão surgindo aos poucos, como farelos desprezados pelo saciado, mas que para quem nada tem, é o mínimo que deverá gerar alguma satisfação. Nessa jornada de contornos místicos, o guia que irá lhe salvar da danação será o amigo de quatro patas que no começo deixou para atrás, mas que somente agora, quando mais precisa, retorna como que por meio de uma intervenção há muito calculada. A ele dá o nome de Encrenca, enquanto são soluções que o cão irá lhe apresentar. Juntos seguem rumo a um vilarejo abandonado, onde são recebidos sem ressalvas. Aos poucos, se verá parte de uma engrenagem social. Mas ela não foi feita para isso. Partir, portanto, será apenas questão de dias. Pois o desconforto que carrega consigo não é qualquer repouso que poderá calar.
Entre os que lhe estendem a mão está o caminhoneiro que até ela retorna de tempos em tempos, ainda que ela mesma não se dê conta. O primeiro encontro é quase como um teste, do qual ela se sai bem-sucedida sem avisos ou alertas. Novamente juntos, a visão de um será exposta à outra, cabendo a ela compartilhar ou não dessa leitura. Nem todos concordam com ele, mas há sabedoria no seu pensar. Ter um ator como Carlos Francisco no controle de um personagem dono de tantas camadas, mas sem pressa alguma em revelá-las, torna o processo de dele se aproximar ainda mais intenso e prazeroso. Tal qual Dora percebe. Mas o que nela recai é mais forte. Não há mão estendida que poderá lhe oferecer fim a uma busca concebida sem prazo de validade. O segredo é seguir andando. Até quando, nem ela mesma sabe.
Dos três longas que dirigiu anteriormente, dois foram assinados ao lado de outros realizadores. Clarissa Campolina volta mais uma vez a esse formato colaborativo – por mais que o cinema seja sempre uma arte coletiva – e entrega Suçuarana ao mundo por meio dos esforços somados aos de Sérgio Borges. Ambos trabalharam com Helvécio Marins Jr. em diferentes ocasiões (ele no documentário Lutar, Lutar, Lutar, 2021, e ela no drama Girimunho, 2011), mas agora deixam o parceiro em comum de lado para se unirem num projeto de imensa força, e ainda mais impressionante delicadeza. Com uma protagonista elaborada aos moldes das heroínas de Agnès Varda (a inspiração em Os Renegados, 1985, não é gratuita, muito menos disfarçada) e um elenco principal atento à responsabilidade que lhe compete, eis um filme que não está preocupado em entregar respostas prontas, ao mesmo tempo em que compartilha da certeza de cada decisão e do respeito em depositar no espectador a perspicácia que irá indicar como preencher as (tantas) lacunas deixadas em aberto. É neste jogo que o processo se completa. E o pouco de uns se revelará o muito de outros tantos.
Filme visto durante o 57º Festival de Brasília, em dezembro de 2024
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