Crítica
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Sinopse
Em Sugarcane, túmulos sem identificação em uma escola indígena canadense causam indignação. A comunidade indígena da região inicia uma investigação e os sobreviventes passam a confrontar o passado, desenterrando verdades e trazendo à tona uma nova leitura dos acontecimentos. Premiado no Critics Choice Documentary Awards 2024.
Crítica
Sugarcane é o caso típico do filme que tende a ser supervalorizado por conta da importância do seu tema. Não que ele seja desprovido de qualidades cinematográficas, mas o seu ímpeto de revelar partes escondidas e dolorosas da História da América do Norte, trazendo à tona fatos chocantes e vítimas, torna-se mais importante do que a forma como isso é feito. O longa-metragem mostra a crueldade dominante nas escolas residenciais indígenas, internatos católicos para crianças de povos originários no Canadá desde o século 19. Os documentaristas Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie fazem um verdadeiro trabalho de arqueologia junto a grupos que lutam por um pouco de justiça ao trazer à tona as perversidades comuns nesses lugares: assassinatos, abusos sexuais, torturas físicas/psicológicas, apagamento da cultura ancestral, etc. Além de diretor, Julian também é personagem dessa trama que diz respeito às próprias raízes, uma vez que seu pai introspectivo estudou num desses locais e por isso carrega marcas profundas. Portanto, temos um filme-denúncia que vai compartilhando gradativamente com o espectador as descobertas de um processo investigativo – que não é iniciativa da produção, é bom repetir. Os testemunhos têm um pouco de tudo, desde as declarações sobre fatos assustadores até a identificação dos efeitos colaterais da conduta criminosa de vários membros da Igreja Católica.
Se levarmos em consideração estritamente a importância da iniciativa e a sensibilidade diretiva na abordagem de histórias tão dolorosas, Sugarcane merece o reconhecimento que vem tendo desde o seu lançamento. Com uma pegada próxima a dos documentários jornalísticos, ele vai entrelaçando descobertas (começando com algumas pequenas e evoluindo às grandes), assim ajudando à compreensão de um contexto complexo com muitos fatores e personagens. Julian percorre casas, repartições públicas e até igrejas para entender o período extenso no qual crianças foram confiadas à tutela de religiosos cristãos que as brutalizaram de diversas maneiras. O pai do diretor/protagonista, por exemplo, é um dos filhos machucados da maldade praticada por um dos poderes políticos mais abrangentes do mundo. Sim, pois a Igreja Católica configura um Estado influente com múltiplos tentáculos ao redor da Terra. E, de acordo com o que nos mostra o filme, ela contribuiu para a continuidade da política de extermínio indígena, que assim perdurou ao longo do século 20, mesmo quando o genocídio nativo parecia apenas uma mancha vergonhosa no passado da América. Então, o longa cumpre o papel essencial de colocar em ampla evidência algo antes confinado ao círculo das vítimas e dos indignados mais próximos, assim contribuindo à percepção de que a opressão aos indígenas perdurou por bastante tempo.
No entanto, pensando no aspecto formal, Sugarcane deixa um pouco a desejar. Primeiro porque carrega os vícios dos documentários televisivos de antigamente, sobretudo no que diz respeito à decupagem (a divisão das cenas em planos) mais orientada pela missão de informar do que necessariamente pensada para as imagens comunicarem algo além das descobertas. Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie criam pequenas pausas entre os elementos da investigação, como se nos fornecessem um respiro depois de apresentar situações dolorosas de pessoas sofrendo terríveis indignidades. E esse artifício poderia ser bem-vindo, desde que não criasse uma dinâmica meio repetitiva à nossa experiência. Desse modo, embora persigam a poesia em instantes-chave, como nos das vozes embargadas por lembranças angustiantes, Julian e Emily acabam enfeitiçados demais pelo tema para pensarem em outra coisa que não construir em termos audiovisuais a denúncia. Não faltam ao filme momentos emocionantes, mas eles valem por aquilo que é mostrado ou pela forma como as coisas são apresentadas? Para uma empreitada tão relevante do ponto de vista histórico quanto humano, faltam a esse “a mais” ao provável candidato ao Oscar 2025. Mesmo incisivo, ele nem sempre apresenta uma atitude contundente. Ainda que seja comovente pela discussão provocada, não vai muito além de nos comunicar.
Os filmes são organismos complexos diante dos quais é sempre reducionista se ater apenas a um aspecto. É preciso olhar as partes para se chegar ao todo. Sugarcane é importante como artefato de denúncia da perpetuação de um genocídio indígena. Assim como fez Martin Scorsese em Assassinos da Lua das Flores (2023), ele mostra a perversidade por baixo da fina camada de civilidade com a qual os povos originários parecem ser tratados na América do Norte. Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie demonstram sensibilidade e respeito diante dos egressos de uma lógica educacional chefiada por padres abusadores e freiras coniventes. Não há como ficar indiferente quando uma pessoa conta que, na infância, testemunhou uma religiosa descartando recém-nascidos em potes de sorvete depois levados a incineradores para destruir as provas dos crimes nas escolas residenciais indígenas. Também é difícil segurar a emoção quando o filho demonstra ao pai que os dois foram afetados por uma lógica de abandonos. Porém, pensando em termos estritamente cinematográficos, levando em consideração a linguagem por meio da qual essas situações são apresentadas, o todo deixa um pouco a desejar. Claro que atualmente é árdua a tarefa de falar sobre fronteiras formais entre TV e cinema, uma vez que tudo está misturado demais. Até mesmo por isso não faz tanto sentido a pegada televisiva anacrônica dele.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 6 |
Miguel Barbieri | 5 |
Chico Fireman | 6 |
MÉDIA | 5.7 |
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