Crítica


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Sinopse

Guo é uma adolescente chinesa de 13 anos de idade. Acostumada a uma vida confortável junto da mãe, ela é enviada durante o verão para a casa da tia, em outra cidade. Nesta casa pobre e apertada ela atesta as dificuldades financeiras dos tios, enquanto sente que sua presença não é desejada. Aos poucos, Guo suspeita que a mãe esteja aproveitando a distância da filha para namorar e levar uma vida independente, sem planos para trazê-la de volta tão cedo.

Crítica

As coming of age stories, ou seja, histórias de passagem à fase adulta, se tornam ainda mais interessantes quando acompanhadas de uma fábula sobre a perda da inocência. Nestes casos, jovens crianças e adolescentes não apenas descobrem a existência de um mundo diferente do seu, como atestam as perversidades do funcionamento social, as crises econômicas, as pressões políticas. Ao espectador adulto, os olhos virgens dos pequenos protagonistas fornecem a possibilidade de reavaliar situações universais por meio de um estranhamento crítico. Por exemplo, quando a jovem Guo (Huang Tian), de 13 anos de idade, é enviada pela mãe para morar temporariamente na casa dos tios, a menina descobre e a existência de pressões trabalhistas levando à demissão do tio e da tia, ambos operários. É possível que o espectador esteja bastante familiarizado com as opressoras hierarquias dentro de grandes empresas. Mas você se lembra quando compreendeu pela primeira vez o desemprego, os sindicatos, a greve, os acordos trabalhistas? A suposta pureza das crianças é empregada enquanto recurso político: precisamos voltar a questionar certos funcionamentos sociais.

Em Summer Blur (2020), este aprendizado ocorre de maneira particularmente violenta. Há inúmeras cenas de tapas na cara, cabelos puxados, mãos sangrando, cadáveres, perseguições na rua, abandono, xingamentos. Guo busca, em vão, algum lugar de pertencimento: a mãe não pretende trazê-la de volta tão cedo; a tia faz questão de frisar a presença indesejada da hóspede dentro da casa apertada. Na escola, a menina possui poucos amigos, sendo perseguida por outro garoto que também sofre bullying e se identifica com ela. Apesar do cenário pessimista, a diretora Han Shuai conquista a proeza de fugir ao maniqueísmo, justificando as atitudes pouco amigáveis de cada personagem. Ao invés de atribuir a culpa à índole destas figuras, prefere enxergar falhas no sistema em geral. O drama traça o retrato de uma China contemporânea onde o crescimento acelerado tem implicado em maior desigualdade de renda e individualismo. As pessoas são levadas à exaustão, sem esperança de ascensão social ou reconhecimento por seus esforços. Na maioria dos roteiros, alguém como o tio de Guo representaria um vagabundo sem interesse em trabalhar. Aqui, ele adquire o contorno de um homem que cruza os braços após ser explorado pelo sistema.

A metáfora mais concreta deste choque com a realidade se encontra na morte de um adolescente. Guo e o espectador são os únicos a testemunhar a fatalidade, que marca o instante em que a infância chega ao fim. No entanto, a estética evita qualquer choque ou sensacionalismo. A cineasta possui a capacidade impressionante de encontrar metáforas e respiros em meio à opressão. O afogamento do colega ocorre no breve instante em que Guo admira o céu (fora de quadro, portanto). Diversos símbolos irrompem na narrativa para representar o desconforto: o aviãozinho movido por controle remoto, a caixa metálica com objetos roubados, os ventiladores na cozinha minúscula, as sombras da protagonista projetadas sobre as paredes cinzentas de uma construção. Shuai elabora uma poesia do tempo e do espaço, oscilando entre a prisão do apartamento, o abandono no prédio vazio e o sentimento de liberdade na piscina. Ela desenvolve duas cenas onde a contagem de 1 a 49 se converte tanto em tentativa de se acalmar quanto em iminência do perigo. Curtas cenas com a luz propositadamente estourada ou os sons crescentes do aviãozinho instauram uma atmosfera de tensão somente por meio da estética.

A atuação das crianças se torna essencial neste filme onde a câmera dedica atenção especial aos rostos. No papel principal, Huang Tian apresenta um trabalho excepcional. Sua personagem acata com as situações em silêncio, enquanto manifesta um turbilhão de sentimentos no semblante expressivo da atriz mirim. A cineasta demonstra ótimo trabalho com crianças, evitando exageros e composições explícitas demais. Guo oscila entre a raiva, a rebeldia, a tristeza e a indignação, em planos longos e dramaticamente exigentes. Diante dela, Zhang Xinyuan serve de contraponto menos naturalista: a presença do garoto em instantes improváveis aproxima a trama do realismo fantástico. O jovem se converte numa expressão exteriorizada da colega e, em determinadas passagens, traduz no corpo aquilo que a menina se vê impossibilitada de dizer. Mesmo a pequena Yan Xingyue surpreende com diálogos extensos, além de um teor de desafio no olhar e nas palavras. Cenas como a briga grave entre Guo e a priminha devem ter sido dificílimas de filmar, porém funcionam graças à fotografia despojada, com a câmera na mão reforçando a aparência de espontaneidade.

Summer Blur constitui obra de maturidade notável para uma diretora em seu primeiro longa-metragem. Han Shuai possui pleno controle da narrativa, do desenvolvimento de personagens e de ferramentas delicadas, a exemplo da trilha sonora (utilizada raramente, em sequências específicas) e a imagem da violência extrema. Ela evita tanto o otimismo fácil quanto o conformismo das narrativas alarmistas: o discurso está menos interessado nos problemas do mundo do que na percepção destes pela garota. “Foi a sua primeira vez?”, lhe pergunta uma mulher adulta, em referência à menstruação. Ora, passada mais de uma hora de conflitos, a questão valeria para diversas “primeiras vezes” que a protagonista acaba de experimentar, contra a sua vontade. O calor extremo da cidade e do pequeno apartamento contribuem ao sentimento de letargia e desconforto, dificultando a passagem à ação. A cena final resume a abordagem da direção, ao ressignificar um pequeno gesto de afeto, transformado em agressão, depois em afeto e agressão novamente. É difícil encontrar palavras para descrever este complexo universo íntimo, e melhor assim: o filme cresce nos sentimentos compartilhados entre o silêncio de Guo e o nosso, do outro lado da tela.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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