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Crítica


7

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Sinopse

Crítica

Desde o princípio, banalidade e fantasia se encontram neste projeto português. Por um lado, o viúvo Isaque leva uma rotina comum, comendo suas pequenas refeições em casa, frequentando o bar local, engraxando os sapatos. Por outro lado, corre uma fofoca na cidade: a esposa morta de Isaque estaria de volta, tendo sido vista pelas ruas da cidade agarrada nos braços de outro homem. As mulheres fofoqueiras, os comerciantes e vizinhos começam a investigar as reações de Isaque, em espera de alguma resposta intensa para apimentar a chatice do dia a dia. Ele quebraria a cara dos dois? Enfrentaria esta fantasma desaforada? Deixaria de frequentar o cemitério para colocar flores no túmulo da esposa?

Em Surdina, o aspecto sobrenatural convive com o naturalismo sem conflitos, nem qualquer forma e ruptura estética. Para representar o conservadorismo do vilarejo, o diretor Rodrigo Areias e o escritor Valter Hugo Mãe, em seu primeiro roteiro de longa-metragem para o cinema, abordam um contexto em que a racionalidade não importa: ninguém se questiona sobre a excepcionalidade do retorno dos mortos. O que move os corações da cidadezinha é a possibilidade de beijos, gritos e choros. Em paralelo, no fundo do quintal de Isaque, vive algum tipo de fera selvagem, presa e ocultada por grades, em representação da ira do homem idoso, prestes a explodir. Não é de se espantar que os dois caminhos se encontrem, de uma maneira ou outra, conjugando a fera invisível e a esposa invisível.

É curioso que o filme se construa entre a impressão de uma minúscula crônica de costumes e um projeto muito mais ambicioso. A direção de fotografia ilumina e enquadra impecavelmente o casarão de Isaque, assim como o jardim e o café da cidade. A captação e edição de som efetuam um trabalho impecável, combinando ruídos locais com uma melancólica trilha de violões dedilhados, enquanto a montagem toma o tempo da contemplação sem arrastar a duração das cenas, resultado num enxuto formato de menos de 80 minutos. Pode-se pensar nesta comédia dramática como a adaptação de um conto que nunca existiu, nos quais se percebe os traços típicos do grande Valter Hugo Mãe em frases como “A vida havia de ser sono e presunto”, entoada pelos amigos do viúvo. Mesmo a obsessão anal do autor está presente através dos diálogos, dos xingamentos à placa do carro em que se lê “cu”.

Assim, o despojamento jamais se converte em precariedade estética, e cada pequeno símbolo é ressignificado rumo à conclusão – especialmente o belo destino reservado à fera, em procedimento análogo ao “Bestiário” de Julio Cortázar. Areias aborda a questão do luto numa trajetória que parte da fantasia ao realismo, do absurdo à verossimilhança. Se a história desperta sorrisos inicialmente com a improbabilidade da fantasma adúltera, ela aos poucos se revela mais amarga e consequente (ou seja, as sugestões não constituem meras brincadeiras) conforme se investiga as dores de Isaque por trás da aparência carrancuda. No papel principal, António Durães compõe com precisão o tipo íntegro, buscando efetuar o luto em silêncio num lugar onde todos invadem a sua vida privada, para vigiá-lo e lhe dar ordens. Por isso, ele desenvolve um comportamento arisco, espécie de resignação de quem não pode fugir (nem da situação da morte, nem da cidadezinha onde vive).

Em alguns momentos, o humor de planos fixos e situações absurdas tratadas com banalidade remetem ao cinema de Aki Kaurismaki, especialmente as situações de O Porto (2011). Em comum, ambos guardam a aparência de uma pequena história cujas implicações graves são abordadas com sutileza, para não interferirem na placidez do conjunto. Surdina resolve seus conflitos sem explosões nem acertos de contas: ele apenas sugere resoluções metafóricas por meio de revelações simples, fornecidas apenas ao espectador, ao invés do olhar ávido das fofoqueiras da cidade. Areias e Valter Hugo Mãe trazem uma variação ao retrato do luto, transformando a dor da perda no confronto literal com o fantasma da pessoa amada, e a ira contida, na materialização da besta-fera alimentada diariamente e grunhindo noite adentro. Trata-se de recursos simples enquanto poesia e enquanto produção, e talvez por isso mesmo, compatíveis com a fluidez do pequeno conto português.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
7
Leonardo Ribeiro
8
MÉDIA
7.5

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