Crítica
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Sinopse
O cineasta chinês Jia Zhangke volta novamente suas lentes à Shanxi, sua terra natal, dessa vez para mostrar o festival de literatura local, evento que contempla uma lista de conceituados escritores.
Crítica
Nadando Até o Mar se Tornar Azul poderia ser descrito como a versão cinematográfica de um álbum de retratos. De certo modo, o cinema busca nos rostos humanos seu principal foco de atenção – são raríssimos os filmes que desprezam rostos, ou não incluem imagens de humanos como componentes centrais -, porém o diretor Jia Zhang-ke vai além. Sua câmera está focada inteiramente nos rostos que enchem a tela cena após cena, enquanto a montagem busca as semelhanças e diferenças evidenciadas por eles: o rosto de um homem idoso ao contrário dos rostos de adolescentes com seus telefones celulares; rostos de guerreiros de terracota se contrapõem aos rostos de chineses idosos na fila para conseguirem comida; rostos de uma multidão anônima encaram panfletos com rostos de homens procurados pela polícia. Os rostos se comunicam, embora não despertem uma conversa propriamente dita: através de monólogos solitários, eles compartilham suas histórias com a câmera – e por extensão, diretamente com o espectador.
Isso significa que o cineasta investe na estrutura clássica dos talking heads, ou seja, os depoimentos frontais ao dispositivo. Por um lado, o projeto faz o possível para tornar este registro dinâmico, enquanto valoriza o aspecto melancólico dos discursos como um todo: Zhang-ke explora as câmeras móveis sobre os corpos dos protagonistas, introduz interstícios poéticos ao som de ópera, compara as narrativas sobre trabalhadores rurais com artesanatos representando estes cidadãos e fragmenta o ritmo em curtos e numerosos capítulos cujos títulos (“mãe”, “pai”, “comer”, “viver”) servem de indicativos lúdicos ao invés de uma organização narrativa propriamente dita. Por outro lado, tamanhos esforços não impedem que a narrativa seja verborrágica e extremamente dependente dos diálogos para se desenvolver. As diferentes cidades chinesas são apreendidas enquanto meros cenários das anedotas evocadas pelos personagens, tendo suas peculiaridades atenuadas pela profundidade de campo reduzida. Compreendemos os valores de cada local por meio das falas ao invés das imagens destinadas a representá-las.
Curiosamente, Nadando Até o Mar se Tornar Azul – belo título cujo sentido se justifica apenas no minuto final – busca especificamente histórias pessoais de escritores. No início, Zhang-ke concentra-se nos homens do vilarejo onde cresceu, podendo dar a impressão de que o filme inteiro será focado nas especificidades da região. Aos poucos, a montagem abandona as histórias do “Vilarejo da Família Jia”, como é descrito pelos letreiros, para representar as trajetórias pessoais de alguns dos maiores escritores do país. O cineasta acredita no interesse desses artistas enquanto contadores de histórias, embora não possua qualquer vontade de destacar as principais obras de cada um. Interessa à câmera a sensibilidade destes homens e mulheres, além da maneira como o percurso sociopolítico da China moldou suas experiências e, portanto, os seus textos futuros. Busca-se os fatos por trás destes homens e mulheres de ficção, ou seja, as condições necessárias para a gênese do interesse pela arte.
O diretor adota a proposta tradicional de partir de histórias muito pessoais para representar o global, intercalando anedotas particulares (a família numerosa que disputa o arroz mais gostoso do fundo da panela; o escritor que escolhe sua mulher a partir de uma foto repleta de jovens candidatas) com passagens centrais do país, a exemplo de mudanças de gestão e de percepções políticas ao longo das gerações. Zhang-ke sempre foi um cineasta obcecado com a questão do patrimônio cultural e artístico, e após representar a dança e a arquitetura chinesas em suas obras precedentes, se volta ao valor da palavra – seja ela escrita ou oral. A valorização da transmissão atinge seu ápice na belíssima cena em que um adolescente esquece o dialeto da região onde nasceu, até sua mãe invadir o enquadramento, aparentemente não convidada, e ajudá-lo a completar a frase que pretendia contar. Esta também é uma história de aprendizados através do tempo, cabendo ao cinema se debruçar sobre os abismos entre gerações.
Talvez Nadando Até o Mar se Tornar Azul não seja o projeto mais ambicioso, nem mesmo o mais produzido de seu diretor, conhecido pelas ficções monumentais cujas narrativas atravessam décadas da China. No entanto, enquanto projeto pessoal e literalmente caseiro (familiares de Zhang-ke chegam a citá-lo em suas falas), adquire um tom de proximidade louvável dentro de um registro histórico mais amplo. O cineasta busca trazer aos olhos do público a vivência destes agricultores das gerações mais velhas e dos escritores das gerações intermediárias (ou mesmo, em alguns casos, pessoas que exercem ambas as funções), narrando não apenas as versões oficiais, mas os bate-papos durante um café, as histórias de pais doentes e casais apaixonados, lembranças sobre a conquista do primeiro emprego ou sobre o prazer de usar sapatos novos após tanto tempo com calçados antigos. Zhang-ke busca reconstruir a China de sua infância através de causos locais, de maneira simples e afetuosa.
Filme visto no 70º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 7 |
Marcelo Müller | 6 |
MÉDIA | 6.5 |
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