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Sinopse

José atravessa o maior rio da Colômbia em busca dos cadáveres de seus dois filhos assassinados por paramilitares. Apesar de estar dilacerado, José pretende encontrar os corpos e dar aos seus meninos um sepultamento decente.

Crítica

Durante os mais de 120 minutos de Tantas Almas, vemos um sujeito transitando por regiões colombianas dominadas por paramilitares, frutos da união entre narcotraficantes, latifundiários, políticos e militares. Esses grupos milicianos sequestram os dois filhos homens do pescador José (José Arley de Jesús Carvallido Lobo), cuja humildade contrasta com a missão ao mesmo tempo grandiosa e íntima ele que acaba impondo a si próprio. Sim, pois há algo de épico na busca inglória pelos corpos dos jovens durante a perambulação por um rio repleto de cadáveres, nas andanças pela região ribeirinha caracterizada pela hostilidade do poder paralelo e no contato com o cotidiano amedrontado dos moradores. É fácil fazer uma analogia de sua jornada com a do mitológico Ulisses, o protagonista da Ilíada e da Odisseia de Homero. No entanto, José não é um guerreiro que enfrenta perigos marítimos/terrestres para voltar ao aconchego do lar. Ele é um representante modesto da população que sofre nas mãos dos milicianos armados, alguém que luta contra os demônios de seu tempo para afrontar não os deuses ou mesmo as forças do destino, mas a perversidade mundana. Por que José se arrisca num território em tudo hostil às suas demandas a fim de resgatar defuntos? Talvez para assegurar um pouco de dignidade ao povo que, assim como ele, sofre por não estar do lado forte da corda? É possível deduzir isso.

O cineasta Nicolás Rincón Gille não sublinha demais esses possíveis aspectos épicos e/ou poéticos contidos na jornada central de Tantas Almas. O tom é mais próximo do cru, do documental. E isso é compreensível a julgar pelos trabalhos anteriores do realizador – esta é a sua primeira ficção.  Nicolás trabalha na contramão das principais tendências atuais do cinema hegemônico, ou seja, abdicando de transições aceleradas e do pouco tempo à contemplação. Suas tomadas são longas e a câmera se comporta como se documentasse aquilo. Tudo é ficção, mas o dispositivo age como se reagisse ao protagonista, não como se José obedecesse a marcações pré-estabelecidas. A apropriação da linguagem documental também fica clara nas interações de José com as pessoas encontradas ao longo do caminho. A cena mais “posada” é a dele estabelecendo um vínculo momentâneo com o chefe de facção igualmente apaixonado por ciclismo. Aliás, curiosamente, esse tom mais "posado" se aplica a outros momentos de José com milicianos, mas não quando ele está na companhia de moradores ou trabalhadores semelhantes. Enfim, borrar as fronteiras entre ficção e documental funciona para a produção ganhar uma aura de veracidade. Sem tantos artifícios, essa viagem parece mais legítima.

Nicolás Rincón Gille não utiliza o percurso de José para celebrar uma transformação. Nos road movies, os chamados filmes de estrada, geralmente o protagonista chega modificado ao destino, pois há um acúmulo de experiências significativas ao longo do trajeto. Não é o que acontece aqui. José começa e termina mais ou menos no mesmo estágio, numa estagnação que simboliza a crise do país. Além disso, aqui o deslocamento serve para enfatizar os contornos documentais do filme. José é um deflagrador, ou seja, alguém cuja presença lança luz sobre determinadas pessoas ou circunstâncias dessa Colômbia profunda e invisibilizada. Outra coisa importante de ser pontuada: os filmes de estrada são frequentemente marcados por uma inquietação que convida os personagens ao movimento. Portanto, é incomum que uma produção com essas características tenha tempos mortos – como são designados aqueles instantes em que aparentemente nada está acontecendo. Tantas Almas usa (e às vezes abusa um pouquinho) dessas circunstâncias em que José está somente na companhia de sua própria solidão, pensando à beira do rio, fitando com olhar perdido a fogueira que o aquece, mirando a violência ao longe, ponderando sua dor em absoluto silêncio, em suma, respirando e meditando.

Nicolás Rincón Gille investe na criação de uma experiência fundamentalmente imersiva. A ideia é mergulhar o espectador nessa vivência angustiante de José às margens do rio, para isso utilizando diversas contradições internas. Além dos citados tempos mortos num filme de estrada, do tipo que geralmente convida ao movimento para sublinhar gestos de libertação e modificação, há uma subentendida corrida contra o relógio. José não fala que precisa acelerar o passo, mas fica implícito que a decomposição dos cadáveres dos filhos impõe uma urgência que também é silenciada. Tantas Almas não é uma experiência fácil, daquelas em que as nossas expectativas e anseios são constantemente atendidas e/ou frustradas com claros propósitos narrativos. O realizador constrói uma encenação sem pontos de virada clássicos nem curvas dramáticas acentuadas, desprovida de atos bem definidos. Para o bem e para o mal, parece que estamos andando em círculos na companhia de José, testemunhando uma tarefa à qual a geografia e o tempo são ora aliados, ora inimigos. Para o bem, pois o resultado permite divagar e contemplar as nuances ao sabor de um ritmo vagarosamente compassado. Para o mal, pois nem sempre o percurso é instigante, frequentemente tendo situações parecidas que vão criando repetições às vezes improdutivas. O discurso político é atrelado à impotência do homem comum, não aos heroísmos ou aos ímpetos de resistência. Não existe um bem que prevaleça sobre o mal.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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