Crítica
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Sinopse
Ano de 1978. No Brasil, a ditadura militar, ainda atuante, mostrava sinais de superação. Um teatro/cabaret de fundo anarquista, o Chão de Estrelas, que reunia intelectuais e artistas, junto a seu tradicional público de homossexuais, ensaiava a resistência pelo deboche e pela anarquia. Clécio, 32 anos, é o líder dessa trupe. Sua vida muda ao conhecer Fininha, apelido do soldado Arlindo, 18 anos. Os dois dão início a um romance no qual as relações de poder se estabelecem de forma enviesada. O amor que germina desse encontro é pautado pelo conflito entre dois mundos.
Crítica
A especulação era grande e correu pelas bocas: Tatuagem, de Hilton Lacerda, apresentado pela primeira vez no segundo dia de mostra competitiva do Festival de Cinema de Gramado, seria um filme chocante para a plateia conservadora do Palácio dos Festivais e poderia ser uma das produções mais polêmicas do cinema nacional em 2013. Mas qual a razão do burburinho? Ao contar a história do fictício grupo tropicalista de artistas e performers, o Chão de Estrelas, no Recife dos anos 70, Lacerda se aprofunda em questões de ordem política (ditadura militar) e ainda de gênero e sexualidade (a relação homossexual entre os dois protagonistas) de forma crua e característica de seus trabalhos anteriores como roteirista em A Febre do Rato (2012) e Amarelo Manga (2001). Surpreendentemente, o resultado passou longe deste choque construído previamente e Tatuagem carrega uma perspectiva positiva e natural em suas abordagens sem parecer gratuito e exagerado.
Clécio, em excepcional atuação de Irandhir Santos, é o líder do grupo de artistas que acaba se apaixonando pelo soldado Fininha (Jesuíta Barbosa), o qual faz uma visita ao Chão de Estrelas. A paixão que surge avassaladora faz com que o militar adentre ao coletivo, se entregando ao amadurecimento e à descoberta de sua sexualidade ao passo que Clécio é modificado com este novo amor. Com um elenco que traz ótimas e reveladoras atuações, caso de Jesuíta Barbosa, que interpreta Fininha, ou ainda Rodrigo Garcia, como o travesti Paulette, tudo é representado sem exageros e clichês. A beleza da direção de arte está presente nos números musicais, os quais intercalam momentos de melancolia e humor, em especial o transgressor e revelador melô do cu, uma das cenas inesquecíveis e mais arrebatadoras da produção.
Com referências à segunda fase do Cinema Novo e a produções pernambucanas em super 8, assistimos a um filme eufórico, de camadas que remetem à arte brasileira explodindo na tela, seja pelo espetáculo apresentado pelo coletivo ou ainda pela paixão com que Lacerda explora sua mise-en-scène. É arrebatadora a cena em que Clécio e Paulette discutem seu relacionamento, amizade e a entrada de Fininha ao coletivo, ou ainda, a descoberta do nascimento e morte do sobrinho do soldado, um bebê acéfalo que pode muito bem ser uma metáfora aos que não possuem ideais em meio a ditadura. Aliás, reside aí a contemporaneidade da produção, que apesar de retratar os anos de 1978 e 1979, é passível de ser transportada para os dias atuais ao visualizarmos instituições de ideais repressores como a igreja.
Chega a ser um tanto difícil não comparar em alguns momentos o filme de Lacerda com a também recente produção da família Barreto, Flores Raras (2013). Ambas trabalham a temática da sexualidade e resgatam a ditadura militar em suas histórias. Enquanto Bruno Barreto opta por um viés mais clássico e sisudo, parecendo em alguns momentos um pouco careta, o realizador de Tatuagem tem seus objetivos bem claros e não tem vergonha de trabalhar a nudez, filmar o sexo e retratar os relacionamentos homossexuais como qualquer outro. A delicadeza de suas cenas e o modo de filmar sem pudores tornam a produção um verdadeiro orgulho para a cinematografia brasileira que possui tão poucos títulos de temática gay, seja em quantidade e também qualidade. Que corra pelas bocas de agora em diante que Tatuagem não carrega o choque, mas sim, uma história de afeto, como o próprio Hilton Lacerda declarou na coletiva de imprensa da produção em Gramado.
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