20170125 terra e luz papo de cinema cartaz

Crítica

Terra e Luz, primeiro filme do crítico e professor de cinema Renné França, registra a jornada de um sertanejo (Pedro Otto) por uma região inóspita do território brasileiro, inicialmente acompanhado de um amigo, em seguida sozinho, e, por fim, ao lado de uma pequena garota (Maya dos Anjos), sobrevivente como ele. É claro que essa descrição traz à mente, de maneira quase inevitável e imediata, toda uma tradição do sertão no cinema brasileiro, encabeçada pelos icônicos Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. No entanto, a proposta de França aqui é outra.

Partindo desse background cinemanovista, o diretor leva Terra e Luz para o terreno do cinema de horror. O protagonista do filme, diferentemente de Fabiano, em Vidas Secas, ou de Manuel, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, não foge exatamente da seca ou da violência no campo, ao menos não literalmente: seus perseguidores são vampiros que vagam pela noite se alimentando dos miseráveis que tentam sobreviver ao ambiente hostil que é o sertão brasileiro. Por outro lado, é verdade que, num nível metafórico, talvez seja possível enxergar nessas figuras monstruosas representações das ameaças contumazes enfrentadas por sertanejos e migrantes, surgindo daí uma interessantíssima ligação entre a fome decorrente da miséria, tão atrelada, no cinema, a filmes políticos e de denúncia social, e o gênero horror. Aqui, o protagonista chega a comer carne humana e uma página da revista Veja que anuncia: “você é o que você come”.

Como exercício dentro desse gênero, aliás, o que parece ser o interesse principal de França, Terra e Luz funciona principalmente em sua primeira meia hora. Totalmente desprovido de diálogos, o ato inicial do filme contém não só os melhores momentos envolvendo as práticas alimentares de seu protagonista, como também uma incômoda atmosfera de estranhamento, decorrente de um trato cuidadoso do diretor com o desconhecido que povoa sua narrativa. Infelizmente, quando os personagens do sertanejo e da menina passam a ter de interagir, inclusive por meio de falas, o filme perde bastante força, em razão da baixa qualidade de muitos desses diálogos (sendo o pior deles, disparado, aquele que traz a verbalização ridiculamente expositiva do título do filme), das limitações do elenco e principalmente da obviedade dos rumos tomados pela história.

Ainda assim, trata-se de uma realização admirável, tanto pelo esmero visual alcançado dentro das condições precárias de produção, quanto pela maneira como estabelece a conversa entre as tradições, a princípio tão distantes, do Cinema Novo brasileiro e do gênero horror. Talvez o mais impressionante de Terra e Luz, no fim das contas, seja o quanto a atmosfera pós-apocalíptica que França busca evocar – e que, dadas as especificidades da narrativa que criou, remete à história, algumas vezes adaptadas para o cinema, do livro Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson – não está muito longe dos ambientes e percursos de personagens filmados por Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha em suas respectivas obras-primas. Graças à competência de França na construção dessa ponte entre diferentes tradições cinematográficas, Terra e Luz poderia se passar tanto num futuro distópico (como descreve a sinopse oficial do filme) quanto na década de 1930, ou antes disso.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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