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Crítica


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Sinopse

Três mulheres são convidadas a uma casa de repouso onde podem explorar seus problemas e suas questões de ordem sexual. Elas tentam se manter equilibradas sob a supervisão de um terapeuta e de uma assistente social.

Crítica

“Que filme… estranho”. Este foi o comentário mais escutado pelos corredores da Berlinale após a sessão de imprensa de That Kind of Summer (2022). Grupos de críticos manifestavam sentimentos contraditórios, sem saberem dizer se tinham gostado do que acabavam de ver. Para o diretor Denis Côté, esse pode ser um elogio, afinal, o cineasta canadense tem construído sua carreira a partir de tais filmes “estranhos”, difíceis de catalogar num gênero preciso, ou de encaixar numa estrutura preconcebida. Em geral, seus personagens fantasmáticos habitam um mundo mágico onde tudo pode acontecer, mas nada extraordinário acontece (caso de Bestiário, 2012, Vic+Flo Viram um Urso, 2013, e Higiene Social, 2021). Ou, em registro simétrico, ocupam um universo estagnado onde são os únicos a vivenciar fatos excepcionais (caso de Antologia da Cidade Fantasma, 2019). De qualquer modo, existe uma assimetria, um estranhamento entre as jovens protagonistas desta produção e o local onde passam as férias. Trata-se de uma atmosfera de repulsa e atração, com igual intensidade — flerta-se simultaneamente com os cinemas erótico e de horror. Assim, tratam com naturalidade acontecimentos grotescos, enquanto encaram com pavor outros que, na compreensão média, seriam banais.

O longa-metragem leva ao ápice este jogo de fricções. “Serão 26 dias com três mulheres hipersexualizadas”, avisa o educador Sami (Samir Guesmi), a respeito do internato terapêutico. Sabemos que as integrantes do programa são rebeldes, que a terapeuta disponível ainda dá seus primeiros passos nessa técnica, e que Sami será seduzido pelas garotas heterossexuais. Em outras palavras, a premissa constitui um prato cheio ao conflito, às faíscas de sexo, perversão e reclusão dentro de uma casa. Partindo de conflitos semelhantes, Lars von Trier faria um épico sensacionalista como Ninfomaníaca (2013), e Hagar Ben-Asher desenharia uma crônica da autonomia feminina no excelente The Slut (2011). Côté, por sua vez, oferece a si próprio o desafio de sustentar a atenção do espectador sem entregar o que promete. Trata-se de uma obra não sexual a respeito do sexo, e um filme desprovido de fetichismo a respeito de fetiches. Como representar algo ausente nas imagens? De que maneira a abordar a compulsão por sexo oral, anal, orgias, humilhação e sadomasoquismo sem torná-los sedutores ao olho do espectador? O canadense intelectualiza pulsões e racionaliza aquilo que foge ao escopo da lógica por excelência. Assim, frustra o espectador interessado em emoções fortes, privilegiando a reflexão sobre o sexo ao sexo de fato.

Em paralelo, o roteiro estabelece um princípio de horizontalidade entre os personagens: nenhum será mais importante do que o outro, o que inclui a terapeuta e o assistente. Os cinco serão testados em seus desejos sexuais, seus sentimentos de afeto e pertencimento — a experiência produzirá efeito equivalente nos profissionais e nas garotas. No fundo, Un Été Comme Ça remete a uma extensa sessão de terapia, com tudo de interessante intelectualmente quanto estático (em termos narrativos) que isso pode representar. O resultado de tamanha imersão será modesto para os envolvidos: esqueça as valiosas lições de vida, curas súbitas e experiências transformadoras ao longo de um verão. Talvez as mulheres venham a se esquecer desta imersão no ano seguinte, o que não retiraria seu valor. A dinâmica de oposições se encontra neste movimento constante: o filme sugere uma terapia ousada e eticamente controversa, cuja prática jamais se desenvolve (presenciamos apenas uma escuta terapêutica comum); imagina sonhos eróticos e pesadelos psicanalíticos, de importância reduzida à jornada. A masturbação é permitida, assim como o álcool e as drogas. Este verão particular, anunciado pelo título, tenta sustentar o caráter contraditório de um momento tão especial quanto banal. A imagem busca contradizer o discurso, ou seria a si mesma?

Por fim, o drama retira do sexo (e da hipersexualidade) o aspecto de mistério, de fascinação exótica. As protagonistas nunca se resumem a sofredoras, mártires nem doentes à procura de redenção. Há uma notável postura política ao desenhar o sexo compulsivo desprovido de culpa. Em paralelo, a nudez será natural e democrática: os administradores do grupo também terão os corpos expostos. Questões de orientação sexual, de fidelidade, matrimônio e afins são descartadas: o discurso isola da pulsão os controles exercidos pela sociedade. Côté embala seu filme numa textura granulada que retira a história de um tempo preciso, ao passo que evita discutir as famílias, os trabalhos e perspectivas de futuro (para além de traumas de infância e episódios pontuais que se prestam à análise, é claro). Ele explora a voz indireta, o som em off, as metáforas. Uma primeira garota narra o prazer de sentir o esperma secar sobre a sua pele; a segunda tem os altos gemidos sobrepostos aos cômodos vazios da casa; e uma terceira pratica uma orgia ao ar livre, diante de diversas pessoas, porém num ângulo que proíbe a visão do espectador. O sonho erótico com o pai carrega a aparência de cena de horror, enquanto as tentativas de sedução com Sami se encerram em conversas protocolares. O cineasta se esforça em produzir um não-evento, o avesso do espetáculo. Ele atinge o objetivo de uma obra respeitosa e distanciada, algo recompensador conceitualmente, embora hermético no que diz respeito à conexão com o espectador. Não somos levados a nos identificar com nenhuma destas mulheres ou homem, sobre quem conheceremos pouco ao final da imersão. Resta a dúvida se este seria um filme sobre transformações, ou sobre a impossibilidade das mesmas.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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