Crítica
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Sinopse
A região de Ghouta, na Síria, é seguidamente bombardeada por aviões russos. Buscando refúgio, cerca de 400 mil habitantes recorrem a uma complexa rede de túneis, onde também funciona um hospital apelidado de The Cave, local que acolhe as vítimas dos constantes ataques. A doutora Amani lidera a equipe que dá especial atenção às crianças atingidas pelos bombardeios.
Crítica
Crianças chorando, cobertas de feridas e de poeira devido às bombas jogadas sobre civis na Síria. Elas gritam sobre uma maca de hospital, pedem pela mãe, perguntam se vão sobreviver. Enquanto isso, a pediatra Amani retira destroços da boca de um bebê. Estas imagens se multiplicam ao longo de The Cave, duro documentário sobre a resistência tanto da população de Ghouta, bombardeada por caças russos diariamente, quanto dos médicos que buscam manter um hospital em funcionamento dentro de uma rede de túneis subterrâneos. Os doutores reclamam da falta de remédios e de material, mas fazem o possível diante das circunstâncias limitadas. Na falta de anestesia, tocam música para acalmar o paciente em cirurgia. Na hora das refeições, 150 funcionários dividem uma panela de arroz, e nada mais.
Seria muito fácil criar um vídeo-denúncia, um institucional humanitário sobre os crimes praticados no país. Haveria catástrofes em quantidade suficiente para emocionar o público através das típicas ferramentas de chantagem emocional. No entanto, o primeiro mérito da direção de Feras Fayyad se encontra na contenção. O filme deixa que o conteúdo fale por si próprio, sem aprofundar o caráter sentimental através da linguagem empregada. Isso significa que a montagem é seca, interrompendo subitamente momentos de choque ou tristeza, e saltando no tempo para mostrar o dia seguinte; o trabalho de câmera evita se aproximar dos rostos; a edição de som inclui uma pequena trilha sonora discreta e pontual, ao invés dos habituais violinos melódicos; e o ritmo segue a rotina de um setor de urgências atribulado: não há tempo para chorar a morte de um paciente em particular, porque há muitos outros chegando ao mesmo tempo. O trabalho continua.
Em especial, The Cave faz questão de abordar o trabalho de Amani, jovem médica e diretora do hospital, que ocupa o cargo com irretocável senso de profissionalismo. A protagonista não se torna uma heroína sem falhas, apenas uma mulher que exerce a medicina em condições extremamente adversas “para canalizar a raiva” contra o regime opressor, de acordo com suas palavras. O posicionamento de Amani se torna político, ao invés de moral – ela não pretende apenas “fazer o bem”, e sim demonstrar ao regime de Bashar Al-Assad a capacidade do povo em resistir. Esta mulher ainda enfrenta o machismo diário de pacientes que prefeririam vê-la em casa, ao invés de liderando uma equipe com homens. A cada novo xingamento, ela questiona a incapacidade da sociedade síria em colocar a mulher em pé de igualdade com os homens, sugerindo que “a religião é uma arma masculina”. Ela questiona até a proteção divina na cidade coberta por bombas: “Deus está mesmo nos observando?”. Existe um caráter profundamente questionador no rosto aparentemente doce da médica, algo que o documentário capta muito bem.
O filme também se sobressai na tarefa de retratar a guerra por sua ausência, uma vez que a câmera permanece num lugar protegido, sob a terra, enquanto os caças sobrevoam o espaço lá fora. São belíssimas as cenas em que os médicos reconhecem cada tipo de avião de guerra pelo barulho dos motores – devido ao costume com ataques diários -, ou quando a cozinheira Samaher se assusta com o barulho de uma motocicleta, pensando por um segundo se tratar de um novo ataque. Há espaço para leveza neste retrato, quando os funcionários improvisam uma festa de aniversário para Amani, ou brincam uns com os outros sobre seus gostos musicais. Fayyad busca extrair o lado humano da resistência à barbárie, enquanto constrói as personalidades distintas de seus três ou quatro personagens principais. Eles não são apenas pessoas fugindo de bombas: trata-se de um cirurgião apaixonado por música clássica, outro médico que defende a posição de liderança das mulheres, uma cozinheira que prepara cuscuz para 150 pessoas, uma diretora de hospital que pensa se deveria colocar um pouco de maquiagem no rosto quando sai de casa de manhã. Estes detalhes tornam as pessoas únicas, e ao mesmo tempo universais, dignas de identificação com o espectador. Não estamos apenas vendo o outro, a representação do povo sírio, e sim pessoas como cada um de nós, mesmo ocidentais e cristãos.
The Cave seria ainda melhor caso aprofundasse as circunstâncias políticas da guerra civil. Entre os rápidos letreiros explicativos no início e os tradicionais letreiros de conclusão, pouco se diz sobre o discurso oficial do governo contra os rebeldes sírios, contra o Estado Islâmico, ou ainda sobre o apoio russo (Desde quando? Sob quais alegações?). O complexo túnel tampouco ganha uma contextualização: desde quando foi construído, e com qual propósito, antes de se tornar um hospital? Como a instituição, por mais precária que seja, mantém financeiramente a estrutura capaz de efetuar cirurgias complexas, com geradores em caso de cortes de luz? Como se organiza o dia a dia administrativo de um hospital em tais circunstâncias? O filme prefere se ater ao mínimo necessário: há uma guerra atacando civis, e eles precisam se proteger. O discurso evita o olhar sociológico, ou mesmo histórico, para se focar no humanismo, nas estratégias de ataque e defesa de cada um dos lados. O espectador terminará a sessão conhecendo pouco sobre as raízes políticas de um dos conflitos mais sangrentos dos últimos 20 anos, mas conhecerá a história de anônimos que lutam para sobreviver à guerra, e que dificilmente chegam às capas dos jornais.
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