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Crítica


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Sinopse

A vida da comunidade judaica de Tessalônica é também marcada por diversos perigos cotidianos. Passado e presente convergem nas fendas da História durante seis episódios aparentemente sem qualquer ligação.

Crítica

Seria possível apresentar este projeto pelo tema: a perseguição a judeus gregos durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, por mais forte que seja a discussão histórica, nada supera as escolhas estéticas dos diretores Christos Passalis e Syllas Tzoumerkas. The City and the City (2022) constitui uma tentativa múltipla, fragmentada e dispersa de abarcar diversas vertentes do Holocausto e do antissemitismo: via documentário, reconstituição de passagens verídicas, repetições, metáforas, instantes poéticos e outros que beiram a abstração. O espectador nunca sabe ao certo o que vem pela frente, posto que as cenas se opõem às anteriores e contradizem a linguagem utilizada até então. Por exemplo: a montagem paralela articula duas crianças a bordo de um carro de vendas, num passado retratado em preto e branco, com uma dança eufórica e ultra colorida de casais judeus em paisagem contemporânea. Também em paralelo, um garoto corre em câmera lenta. Ele parece atônito diante de um perigo que nunca descobriremos. O longa-metragem se desenvolve pela sucessão frenética de estímulos de diversas naturezas — por que escolher uma única forma de representação, se você pode almejar a implementação de todas elas? A multiplicidade e a saturação, neste caso, tornam-se objetivos em si próprios.

Este estilo provoca a sensação curiosa de uma obra tão didática quanto confusa: ela explica demais e, mesmo assim, permanece hermética em sua forma de comunicação. Por um lado, há inúmeras interrupções das cenas para a intromissão de longos letreiros pedagógicos, aludindo à conversão dos judeus em minoria em Tessalônica, às principais emboscadas, sequestros e torturas, e ao fato de que, entre 46 mil judeus gregos enviados aos campos de concentração, apenas mil sobreviveram. Por outro lado, os dados estão longe de uma linearidade, uma relação de causa ou consequência, um encadeamento lógico das ideias. Alude-se ao julgamento e à condenação dos responsáveis pelos atos bárbaros em 1958-59, para então se retornar aos feitos dos anos 1940. Passagens priorizadas pelo roteiro (a destruição de lápides, o enterro dos ossos, a tentativa de fuga, a destruição dos prostíbulos) alternam-se com velocidade, sem que o espectador saiba como se originaram, que efeitos produzem, e sobretudo, que importância exerceram na sociedade ao redor. Imaginando um paralelo com a ditadura brasileira, teríamos um discurso pontuando que: 1. Assassinaram Vladimir Herzog, 2. Torturaram mulheres, 3. Implementaram o AI-5, 4. Houve o reestabelecimento democrático nos anos 1980, 5. Deu-se o golpe em 1964. Estas passagens são verídicas e importantes, porém carecem de uma contextualização essencial ao aprofundamento do debate.

Para o espectador, resta uma paisagem composta por duas dúzias de personagens entrando e saindo de cena sem serem apresentados. Desconhecemos seus nomes, graus de relação entre si, objetivos, traços de personalidade. Uma mãe idosa se revolta contra o filho que canta a plenos pulmões durante um evento fúnebre — mas sem os traços da mãe e do garoto, o instante surte pouco efeito. Angeliki Papoulia, de O Lagosta (2015), sustenta um olhar perdido durante a alegre dança comunitária, porém na ausência de construção psicológica, a tristeza soa fortuita. Imagina-se que cada ator tenha construído uma história pregressa. Certamente, existe uma coerência interna durante as atuações, mas o espectador é expulso do jogo cênico — o filme não foi elaborado para nós, e sim apesar de nós. O que sentir diante da prostituta que improvisa um quarto dentro de um pedaço de cano apertado, num espaço aberto? Devemos sentir pena, desconforto, raiva, ou apenas um sentimento geral de absurdo? The City and the City possui diversos rostos humanos, mas pouco humanismo. O abraço apertado entre dois jovens no cruzamento das avenidas contemporâneas perde o sentido sem uma descrição prévia de ambos; e a interação entre advogada e requerente, beirando o flerte, tem seu potencial erótico diluído pela anonimidade. Não há história fora de um contexto social, e o mesmo vale para personagens, narrativas e o cinema em geral.

O projeto ainda pode incomodar pela maneira peculiar de lidar com a violência. Os judeus da época sofreram inúmeros abusos físicos e psicológicos, sem dúvida. Em contrapartida, a decisão de recriar estes momentos aos olhos do público, com atores contemporâneos, beira uma perturbadora perversidade. As longas sequências com homens judeus numa praça pública, sustentando os braços ao alto pelo prazer das autoridades nazistas (“Vamos ver o que eles sabem fazer com as mãos além de contar dinheiro”), parece infligir aos atores, muitos deles idosos, uma forma de punição equivalente àquela sofrida por seus antecessores. Os diversos tapas na cara ocorrem em plano-sequência, em enquadramento aberto, para que o público tenha a certeza de que a penalidade não foi simulada. Algo parecido ocorre com o homem espancado no chão, sofrendo chutes dos rapazes vingativos. As fotos da época comprovam que tais técnicas existiram de fato — ninguém duvidaria. Cabe questionar a ética da mise en scène: por que interessa tanto a Passalis e Tzoumerkas aproximar-se desta forma de violência? Por que repetir a tortura antiga ao invés de representá-la, como fazem adiante na cena da garota sentada sozinha na mesa de jantar? Haveria maneiras mais inteligentes, ou seja, menos explícitas ou propensas ao espetáculo, de resgatar um episódio doloroso sem reproduzir as dores de antigamente. 

Ora, o longa-metragem apaixona-se pelo artifício, pelos efeitos de montagem, pelos ornamentos da imagem e arroubos de potência. Neste caso, até o impressionante domínio de luz, enquadramentos e profundidade de campo do diretor de fotografia Simos Sarketzis produz um gosto amargo, posto que nenhuma beleza existe isoladamente, dotada de valor intrínseco e dissociada de um ponto de vista. Um pôr do sol alaranjado pode funcionar bem para um romance adaptado de Nicholas Sparks, enquanto soa manipulador e idealista no retrato de guerras. Inversamente, a imagem da crueldade pode servir à denúncia de uma desumanidade, ou à reprodução fetichista dos males que se pretende denunciar. Em separado, os episódios entrecortados possuem qualidades estéticas, de performance e criatividade notáveis, capazes de romper com a rigidez ou a solenidade esperada de recriações históricas. No entanto, uma vez juntas, rejeitam-se ao invés de se somarem, ou oferecerem um conjunto coerente. Trata-se de uma iniciativa onde o conceito soa mais arrojado do que sua realização, sobretudo diante da gravidade do tema. O cinema ultra estetizante e autoral corre o risco de se sobrepor às complexidades do tema escolhido, tornando-o secundário em relação aos exercícios de estilo de seu criador. 

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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