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Sinopse

Em The Electric State, uma adolescente órfã pega a estrada com um robô misterioso em busca do irmão. Há muito tempo esse sujeito está desaparecido. Em sua jornada de desafios, ela acaba encontrando no caminho um contrabandista excêntrico e seu hilário ajudante. Estrelado por Millie Bobby Brown e Chris Pratt.

Crítica

No mundo predominantemente capitalista onde vivemos, é natural que a notícia de maior destaque sobre The Electric State seja: trata-se do filme mais caro feito pela Netflix em toda a sua história. Com orçamento aproximado de US$ 300 milhões, essa ficção científica ambientada num retrofuturista anos 1990 até poderia estar no centro de uma grande ironia, pois defende a necessidade de resistir urgentemente ao vilão do tipo “empreendedor megalomaníaco à lá Elon Musk”. Esse sujeito transformou o mundo num lugar mais virtual do que físico depois da guerra entre humanos e robôs cansados de serem escravizados. A batalha é coisa do passado, os seres mecânicos foram banidos para desertos insalubres (apartheid?) e o dia a dia das pessoas acabou sendo modificado pela invenção de um dispositivo capaz de transportar as suas mentes a outros lugares. Os irmãos Anthony e Joe Russo tem um panorama ideal para criticar justamente a submissão da massa aos desejos escusos de um indivíduo que acumula poder ao convencer todos de que as criações de suas empresas significam o futuro. Isso porque o pouco que vemos desses Estados Unidos é degradação e pilhas de humanos sentados em poltronas meio que se decompondo vivos enquanto deixam suas mentes vagarem por ilusões confortáveis. Poderia até mesmo ser uma crítica à facilidade com a qual os espectadores atualmente se tornam passivos.

A conjugação do verbo “poder” no futuro do pretérito aqui é proposital. Isso porque The Electric State simplesmente passa por cima de todas as oportunidades de ser incisivo, sério ou mesmo de estabelecer conexões significativas com o nosso presente. A isso, os irmãos Anthony e Joe Russo preferem fazer mais uma aventura inocente e dócil visando o público infantojuvenil, ao ponto de processar assuntos obscuros em pílulas para consumo ligeiro e descompromissado. Eles assim pavimentam o caminho para heroísmos e soluções providenciais anulando problemas de altíssima complexidade. A protagonista é Michelle (Millie Bobby Brown), adolescente fortemente conectada ao irmão mais novo, Christopher (Woody Norman), um daqueles cérebros privilegiados com inteligência quase sobre-humana. Repentinamente, ela aparece sob a tutela de um homem estranho (interpretado por Jason Alexander, uma das estrelas de Seinfeld, 1989-1998) e ficamos sabendo que sua família inteira morreu num acidente automobilístico, inclusive Christopher. Receber essa informação de supetão deveria nos causar alguma coisa, mas não. Isso porque o roteiro assinado por Christopher Markus e Stephen McFeely, com base na graphic novel de Simon Stålenhag, atropela todos os sentimentos da garota órfã como se eles não fossem importantes. Aliás, no filme há pouco tempo para assimilar as coisas, pois tudo é corrido e vazio.

Outra prova de que The Electric State é simplesmente incapaz de representar emoções humanas é a displicência após Michelle descobrir que uma fração da consciência do irmão está vivendo num robô. Em parte, a apatia da personagem tem a ver com o encadeamento burocrático e frio das revelações e dos acontecimentos. Mas é preciso também responsabilizar a atriz Millie Bobby Brown pelo desânimo impresso na protagonista que deveria ser constantemente chacoalhada pela descoberta de que não está sozinha e há esperança de reverter o imperialismo capitalista como única forma de organização social – a ênfase dramática dessa frase certamente não representa a preguiça e desinteresse com os quais a fagulha do discurso político é mantida. Voltando à Michelle, ela demonstra o mesmo tipo de reação ao descobrir a sobrevida do irmão, ao precisar escapar dos bandidos, ao encontrar amigos novos e, mais à frente, ao ser convocada para liderar uma rebelião de marginalizados. Parece que a Netflix está se esforçando bastante para transformar Millie Bobby Brown numa estrela capaz de encabeçar projetos grandiosos. No entanto, a atriz ainda não demonstra ter repertório ou mesmo maturidade cênica para ir além de sempre repetir os trejeitos da Eleven de Stranger Things (2016-2025), o seu trabalho mais conhecido: olhares desesperados, uma aura pouco convincente de vítima sofredora e nada mais.

The Electric State tem visual interessante, bons efeitos, mas nada que justifique o investimento altíssimo do tipo que cria uma discrepância nociva de mercado. A Netflix alardeou o filme por ele ter custado caro, então é natural que críticos e público tragam esse aspecto para a discussão dos (poucos) méritos e (muitos) deméritos da produção. Chris Pratt é outro ator que opera no modo piloto automático, apenas reproduzindo os trejeitos aventureiros/engraçadinhos de Peter Quill, o líder dos Guardiões das Galáxias que o tornou famoso mundialmente. Portanto, o que vemos é a Eleven e o Senhor das Estrelas viajando por um mundo tão insosso que as pouco mais de duas horas de filme demoram a passar. Os irmãos Anthony e Joe Russo, responsáveis por filmes importantes do Universo Cinematográfico Marvel, se destacaram na seara dos super-heróis pela sua capacidade de criar ótimas sequências de ação. Infelizmente, parece que eles deixaram essa habilidade reservada para a Marvel, pois à Netflix os dois entregam uma correria enfadonha e sem qualquer impacto emocional. É triste que diante de uma montanha-russa sci-fi como essa as sensações sejam quase completamente esterilizadas. É difícil se emocionar quando alguém importante morre, assim que uma menina precisa tomar a decisão mais difícil de sua vida ou mesmo na hora em que, pela enésima vez, vemos um militar se arrependendo milagrosamente de seus atos violentos porque finalmente conheceu o que é amor de verdade. Na realidade do filme, ser inteligente é perigoso. O que os Russo fazem com isso? Quase nada.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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