Crítica


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Sinopse

Um grupo de mascarados lincha um homem igualmente mascarado.

Crítica

Sempre que determinado(a) cineasta desponta com um trabalho de destaque, tornando-se alguém a ser observado(a) após premiações e/ou elogios efusivos da crítica especializada, a expectativa recai sobre a sua realização subsequente, às vezes desproporcionalmente. Jonathan Glazer não era exatamente um novato quando lançou o enigmático Sob a Pele (2013), tampouco um estreante na seara dos longas-metragens – anteriormente tinha dirigido Reencarnação (2004). Mas, o filme que conta com a alardeada nudez de uma Scarlett Johansson encarnando a impiedosa alienígena devoradora de homens aparentemente apresentou ao mundo cinéfilo um autor a ser seguido de perto. Por isso, The Fall chega ao público exatamente com o peso de ser esse “passo seguinte”, aquele cujo peso sobre os ombros pode ser entendido como inevitável. Desta vez o britânico preferiu trabalhar com o curta-metragem, quiçá para experimentar livremente a partir de uma narrativa demarcada essencialmente pela sensorialidade. Um laboratório para algo maior? Pode até ser.

Baseado em pinturas do artista plástico espanhol Francisco de Goya, este reconhecido pela singular capacidade para retratar o bizarro e o sombrio, Glazer não perde tempo em seus parcos sete minutos (na verdade um pouco mais de cinco, sem os créditos), deflagrando uma paisagem bela, mas perturbada pelo balançar violento da árvore imponente. Tão logo a câmera se aproxime, percebemos que uma pequena aglomeração de mascarados sacode o tronco no intuito de derrubar o sujeito que se abrigou da fúria alheia distante do solo. Já desde esses primeiros instantes, a pintura A Queda surge como uma referência pictórica evidente. Para constatar isso basta uma simples pesquisa posterior à sessão no Google Imagens. Tanto no filme como na tela, a natureza possui tons e tintas de intimação subjacente, com a diferença de no curta-metragem o tombo ser provocado pela ira da turba, não por um ato de rebeldia equina. A mulher eternizada a óleo é substituída pelo homem que parece acusado de um crime. Não há falas. Imperativa é a atmosfera.

Jonathan Glazer retoma a parceria com a cantora e compositora Mica Levi. A trilha sonora é essencial ao clima de pesadelo que substancia essa narrativa amparada nos gestos. Embora os personagens utilizem máscaras, as mesmas não operam no sentido da neutralidade, pelo contrário, especialmente a julgar pela expressividade do protagonista observado como uma vítima da cólera coletiva. O contra-zenital, ângulo em que a câmera se coloca absolutamente voltada para cima, é utilizado de modo perturbador, não ordinariamente. Esse plano incomum instaura uma forte sensação da ameaça espreitando desde as profundezas. A descida paulatina da corda que se precipita desabalada rumo ao abismo, testemunhada na aproximação lenta, cadenciada pela música enervante, acentua a danação do protagonista sobre o qual nada sabemos. Mesmo destituído de singularidade, ele não nos é oferecido como uma figura neutra ou incapaz de gerar empatia e comoção.

The Fall vale o quanto impacta esse seu clima denso de opressão, com Jonathan Glazer demonstrando novamente uma capacidade sobressalente para instigar, principalmente ao observar objetos como se os mesmos estivessem na iminência de libertar-se sozinhos da inércia. Ao indeterminar época, contexto e qualquer outra possibilidade de aferrar as circunstâncias a um tempo específico, por exemplo, o cineasta faz dessa experiência um terreno aberto a interpretações, tornando-a maleável à heterogeneidade das mesmas. Mimetizando as intenções de Goya, especialmente no que diz respeito a criar oportunidades para a erupção da escuridão humana, Glazer coloca, de um lado, a multidão de anônimos disposta a linchar para, quiçá, fazer justiça, e, do outro, um não menos oculto sofrendo a ira da multidão. Nesse percurso, ao invés de apontar caminhos ao entendimento de tudo como metáfora – embora assim também possamos fazer –, ele prefere apostar na potência das ações, ressaltando-as por meio de imagens e sons, expondo o terror que nelas impera.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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