Crítica


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Sinopse

Dentro de um abrigo municipal para adolescentes vivem sete garotas com histórias muito diferentes. Algumas perderam os pais, outras foram vítimas de abuso doméstico e retiradas do lar. Juntas, elas tentam formar uma nova família ao lado dos educadores e assistentes sociais.

Crítica

Quem é o protagonista de The Fam (2021)? O espectador pode levar algum tempo até descobrir onde se encontra o foco narrativo deste drama. Partindo de uma fortíssima cena inicial – uma adolescente sendo arrastada escada abaixo por um adulto –, a narrativa toma o tempo de apresentar cada uma das garotas que convivem no abrigo. Novinha, Audrey, Justine, Précieuse, Alison, Caroline e Tamra são não apenas as moradoras desta instituição, mas também os nomes dos capítulos dedicados às suas histórias individuais. No entanto, ao invés de fornecer flashbacks anteriores à chegada na instituição, o filme prefere voltar a alguns dias ou semanas atrás, explicando a personalidade de cada uma por meio da interação com as demais. Deste modo, nenhuma personagem é apresentada isoladamente. Aos poucos, percebemos que o foco se encontra na “fam”, diminutivo para “família”, ou “la mif”, segundo a gíria em francês. Observamos esta dinâmica atarefada e ruidosa de longe, através de um olhar privilegiado e distanciado. Enquanto as jovens estão conversando, rindo ou brigando, o espectador observa este microcosmo do alto, sabendo o que todos fazem simultaneamente.

Em consequência, esta jornada deixa de ser um “filme de personagem” no singular. A estrutura coral é importantíssima ao diretor Fred Baillif, também roteirista e montador. Ao ocupar esta última função, ele garante que as histórias estejam cruzadas de maneira indissociável. Ele entrelaça as trajetórias de sete adolescentes, cerca de seis educadores e mais alguns coadjuvantes importantes (o senhor no banco do parque, a mãe de Précieuse, o marido de Lora). A estrutura torna-se ambiciosa, sem parar jamais: a câmera chacoalha de um rosto ao seguinte, entrando e saindo de cômodos para acompanhar de perto as inúmeras discussões dentro da instituição. Neste filme de viés terapêutico (os adultos ajudam os jovens que, no final, ajudarão Lora a fazer o luto da filha morta), a palavra possui o potencial de cura. Por isso, cada figura é encorajada a verbalizar aquilo que não gostaria de dizer, seja para si mesmo ou aos outros. Face a tantos filmes dotados de poucos conflitos, este possui conflitos até demais: cada cena expõe feridas de abandono, estupro, assassinato, violência doméstica. Há tantos momentos de abraços quanto de agressões. Trata-se de um processo de canalização dos sentimentos em longo processo de expurgo.

Enquanto retrato do trabalho social, The Fam corre o risco de idealizar os cuidadores, pessoas tão investidas em seus trabalhos que abrem mão da vida pessoal. Eles se percebem apaixonados demais por estes jovens em dificuldade, tendo dificuldade de estabelecer uma linha apenas profissional. Retratos semelhantes ocorrem em De Cabeça Erguida (2015), As Invisíveis (2018), Mais que Especiais (2019) e Transtorno Explosivo (2019), que costumam render bons veículos para os atores, entre ficção e a realidade. Em relação a estes exemplos, o projeto suíço possui a particularidade de evitar o ponto de vista de um único personagem. Por um lado, esta escolha permite diluir o sentimentalismo; por outro, dificulta a identificação com os educadores e as habitantes do abrigo. As interações, complexas e repletas de afeto, se tornam intercambiáveis, até repetitivas ao longo da trama de quase duas horas de duração. Afinal, acompanhamos rotinas onde a situação das garotas não necessariamente se desenvolve. Nestes casos citados, a fotografia explora a câmera na mão, os ambientes onde todos falam ao mesmo tempo, em sentimento de urgência e descontrole. Sublinha-se a dificuldade da vida dos diretores de centros de acolhimento, de modo a tornar seus desafios diários ainda mais louváveis.

Ao menos, dentro do subgênero do “drama sobre assistentes sociais tentando ajudar jovens problemáticos”, o filme captura uma bela espontaneidade entre as meninas, além de diálogos descontraídos, pertinentes ao vocabulário de adolescentes periféricas. Nota-se uma entrega marcante de todas as jovens atrizes, em trabalho consistente e coeso de direção de atores – nenhuma garota destoa das demais. Talvez a surpresa provenha de Claudia Grob, no papel da diretora deste local. Em composição contida, porém bastante expressiva, ela demonstra um controle emocional impressionante, apesar de a atriz não possuir experiência prévia. O momento de Lora sentada na escada, conversando com uma jovem prestes a abandonar a instituição, ou o violento confronto durante o jantar demonstram o talento marcante de Grob. De qualquer modo, o mérito de tamanha coordenação recai sobre Baillif, capaz de orquestrar o trabalho de atores iniciantes de modo a obter tanto a espontaneidade quanto a sofisticação cênica. O filme se converte num exemplo de obra madura enquanto mise en scène e construção de personagens.

É uma pena que a história se enfraqueça nos últimos 30 minutos. Quando chega ao capítulo “La mif”, ou seja, quando as trajetórias individuais se cruzam, o filme se torna, pela primeira vez, melodramático. A conclusão acumula uma quantidade expressiva de tragédias e catarses, como se o complexo desenvolvimento das personagens servisse de antessala para chegarmos às brigas e lágrimas finais. Neste momento, o discurso se torna não apenas conformista, mas também fatalista – vide a imagem final de prostração das meninas ao perceberem o ciclo vicioso da violência. The Fam estabelece um retrato potente de individualidades periféricas, em representatividade cuidadosa de origens, sexualidades, etnias e conflitos (das garotas órfãs àquelas maltratadas pelos pais). No entanto, encontra dificuldade em inserir este discurso dentro de um contexto propositivo: o que devemos compreender a partir deste cenário, para além da constatação de sua existência? Há alternativas para a melhoria do meio assistencial? A situação está evoluindo, regredindo? Ora, o abrigo em questão se encontra cortado de políticas institucionais, preocupando-se sobretudo com a reputação do local e com atitudes éticas, mas nunca com problemas financeiros ou de gestão. Resta o retrato de personagens fascinantes, lutando para ajudar umas às outras. Para o diretor, este esforço constitui um valor e uma finalidade em si mesmo.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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