Crítica


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Sinopse

Sofrendo por conta do seu divórcio recente, Rachel está desempregada e mergulhada em álcool. Diariamente, ela fantasia sobre um casal que consegue vislumbrar do trem. Quando a mulher desaparece, o mistério aumenta.

Crítica

Segunda versão cinematográfica do livro homônimo de Paula Hawkins – a primeira foi A Garota no Trem (2016) – The Girl on The Train pede ao espectador que suspenda descrenças e seja condescendente com sua enorme quantidade de reviravoltas e coincidências. A protagonista é Mira (Parineeti Chopra), promotora bem-sucedida que não penhora princípios mesmo diante das ameaças do acusado prestes a ser sentenciado por força de sua atuação implacável. Primeiro ponto negativo do filme: em nenhum momento posterior essa firmeza ética se mostra como atributo importante de sua personalidade. Casada com Shekhar (Avinash Tiwary), ela vê sua vida "perfeita" virar de cabeça para baixo ao sofrer um acidente que interrompe sua gravidez. A derrocada da personagem é apresentada de modo acelerado, por meio de clipes em que percebemos as rusgas crescentes com o esposo, o mergulho vertiginoso no alcoolismo e uma soma de outros tantos descontroles. Ela é pintada como uma companhia tóxica, enquanto ele é um sujeito que faz das tripas coração para evitar o pior. Logo o paraíso vira inferno e a mulher se torna refém dos próprios demônios.

Até esse ponto as coisas caminham relativamente bem, inclusive com destaque positivo à síntese musicada – bem ao gosto do cinema indiano – que mostra do instante em que Mira e Shekhar se conheceram até eles fixarem residência num lugar confortável. Porém, disso em diante os problemas se avolumam e, como diríamos no jargão, é só ladeira abaixo. Sincronias, casualidades e afins poderiam ser plausíveis, mas não com a protuberância vista em The Girl on The Train. Diariamente, ao se deslocar do subúrbio à capital, Mira passa de trem por uma casa na qual vislumbra uma mulher aparentemente vivendo um idílio semelhante ao seu antes da tragédia. Há um processo de identificação com o resultado inesperado de engatilhar a agressividade da protagonista tão logo ela perceba que seu modelo idealizado talvez não seja tão ilibado. O cineasta Ribhu Dasgupta pesa a mão especialmente nesses instantes de virada, preferindo evocar (mal) atributos do melodrama do que investigar as nuances. Ainda que a história seja marcada por reveses e contingências rocambolescas, uma direção menos subalterna aos desígnios do enredo daria um jeito de equilibrar.

Na medida em que avança, The Girl on The Train perde as poucas qualidades do início. Entre algumas passagens de puro desespero de Mira, surgem interlúdios musicais cujas letras são lamúrias sobre um amor não correspondido. Tais quebras ajudam a esvaziar de tensão o andamento dessa trama repleta de personagens postiços, alguns beirando o caricatural. Quando a mulher observada ao longe morre, Ribhu Dasgupta faz tanta força para incriminar a protagonista, ressalta tão ostensivamente a culpa dela, ao ponto de esvaziar a hipótese pretensamente defendida como a mais óbvia e incontornável. Sem habilidade para manter aceso o suspense, ele praticamente diz, direta e inabilmente, ao público que as aparências enganam. Voltando à questão da perda de memória recente de Mira, ela retorna como engrenagem vital depois de uns 40 minutos sem ao menos ser mencionada. E, como veremos adiante, é uma condição fundamental à inversão de expectativas com um sabor de plot twist vagabundo, porque mal elaborado. Além disso, parece que as pessoas que gravitam em torno da personagem principal são as únicas do mundo, haja visto a identidade do amante da vítima fatal (?) e a ligação de uma oponente constante com o crime. É preciso fazer bastante vista grossa.

Sintoma dos exageros gritantes presentes em todo o filme é a ferida aberta de Mira após o evento que acarretou a morte da desconhecida. A chaga que toma quase metade da testa da protagonista serve para metaforicamente continuarmos vendo-a como alguém machucada. A intenção é boa, mas a viabilização deixa a desejar, exatamente pelo expediente grosseiro e inverossímil (será que não existiam curativos disponíveis?). Emperrar nesses detalhes que podem soar tolos é um indício da falta de consistência da realidade cinematográfica proposta. E para quem não suporta o expediente chamado de “monólogo do vilão” – quando o antagonista para tudo o que está fazendo para explicar, em detalhes, o que aconteceu e/ou a natureza dos seus planos – Ribhu Dasgupta lança mão de dois momentos assim. Mira tinha um problema sério de perda de memória recente, mas passa por cima dele milagrosamente ao tomar ciência de que foi engambelada por pessoas de sua confiança que sabiam dessa brecha. O encerramento conciliatório, a inversão de perspectiva sobre mocinhos e bandidos, tudo isso acontece de modo bem esquemático e anticlimático. Haja complacência.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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