Crítica
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Sinopse
Casos recorrentes de violências sexuais acontecidos nos campus de universidades dos Estados Unidos são sistematicamente abafados, o que acentua a dor das vítimas e de seus familiares.
Crítica
Assistir a The Hunting Ground é uma experiência difícil de ser encarada e processada. Primeiro, por ser um documentário com um tema realmente pesado. Afinal, trata de violência sexual sofrida por mulheres (em sua maioria) e também homens nos campus universitários norte-americanos, focando a partir dos problemas com as administrações dessas instituições, mais interessadas em encobrir os fatos do que em resolvê-los. Segundo, por mostrar o quanto a “humanidade” pode não ter nada de humana. A essência revela um grande painel com depoimentos de vítimas. Um retrato de como as pessoas que sofrem esse tipo de violência lutam por justiça e educação, mesmo diante da retaliação e assédio com as quais são obrigadas a conviver. Meninas são tratadas como meros objetos. Nas festas estudantis, após muito álcool, embarcam quase inconscientes para algum lugar. Lá são violentadas por colegas. E as universidades, ao invés de oferecer algum apoio ou segurança às suas alunas, sugerem o silêncio e preferem não punir severamente os agressores.
Logo na abertura, Andrea Pino e Annie E. Clark relatam suas experiências enquanto estudantes: enfim, o estupro que sofreram na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, e a atitude de reação que tomaram a seguir, através de um movimento ativista, buscando pressionar as universidades a reconhecer publicamente esse problema, punir os autores e prevenir a violência sexual futura. Porém, na medida que o filme avança, percebe-se a profunda pesquisa, o mapeamento e a grande organização estabelecida pelas duas. Conectadas com outras vítimas por todo o território americano, elas apontam que os casos não ocorreram em uma única faculdade, e sim em diversas instituições de ensino dos Estados Unidos. Até as mais notáveis, como Harvard e Yale, estão listadas, o que demonstra se tratar de um problema nacional. Além disso, a maior questão levantada pelo documentário se dá no descaso destas administrações sobre os casos relatados, o que para muitas das sobreviventes é a pior parte do crime. Os interesses econômicos e o poder defendem criminosos, amparados por autoridades covardes e comprometidas com relações de negócios. Alguns dos acusados são atletas famosos (futebol americano, basquete), por exemplo. São pessoas que molestam, abusam e estupram covardemente. Marcando a vida de seus vítimas para sempre.
Até a realização deste filme, o estupro foi o segundo crime com maior número de ocorrências nos campus das universidades norte-americanas. Ao longo do seu desenvolvimento, o filme registra uma mudança radical. A corajosa cruzada empreendida por Andrea Pino e Annie E. Clark mobilizou centenas de alunos em outros estados e chegou à mídia. Com isso, cerca de 100 escolas chegaram a estar sob investigação federal, devido a seus relatórios sobre violência sexual.
São diversas as situações que tomam a tela, evidenciados por relatos que expressam a grande dor física e emocional que é decorrente do abuso. O desafio de quem sofre tal violência em lidar com a situação se torna mais complicado quando precisam lidar ainda com a humilhação, ameaças virtuais e aquelas perguntas típicas de culpabilização da vítima: “com que roupa você estava?”, “você não bebeu demais?”, “por que não reagiu?”, “estava claro que o que havia entre vocês era só amizade?”. Sem contar que como, geralmente, os estupradores são conhecidos, elas encontram os mesmos em ambientes comuns ou na própria sala de aula. E isso pelo simples fato das instituições não tomarem providências sobre o criminoso.
A principal marca percebida em The Hunting Ground é sua temática, pesquisa e a criação de um ambiente seguro para realizar entrevistas impressionantes e extremamente difíceis. Os depoimentos não possuem uma ordem. Vão aparecendo pelo desenrolar da trama, como se acompanhassem as denúncias na mesma aleatoriedade com que elas acontecem nas reitorias. O diretor Kirby Dick – indicado ao Oscar por duas outras produções do gênero, Twist of Faith (2004) e The Invisible War (2012) – tenta encontrar explicações para o comportamento das universidades. Além de reputação, há todo um jogo de interesses financeiros que pode explicar tais atitudes. O nome da instituição defendido por seus atletas bolsistas e as enormes contribuições de membros de fraternidades estão entre as possibilidades.
Lady Gaga se somou ao documentário e ajudou na produção da música-tema, “Til it Happens to You” (que, em tradução direta, seria “Até que Aconteça com Você”). A canção concorreu ao Oscar deste ano. Sua apresentação (haviam 50 sobreviventes no palco) foi de um impacto tremendo. Mas não recebeu o prêmio, infelizmente. Mas foi indicada ainda ao Grammy e ao Critics Choice Awards, além de ter levado ao Satellite Awards, garantindo uma importante atenção do público e da mídia ao longa e ao tema aqui em debate.
Se o formato e estrutura de The Hunting Ground são bem convencionais, linguagem apropriada aos canais de televisão (cabeças falantes, gráficos na tela) o resultado final dos 123 minutos de projeção é mesmo perturbador. Afinal, a intenção da obra é gerar impacto. Um filme que dá luz à tremenda coragem de duas mulheres que enfrentaram a impunidade. Encararam o poder e a resignação de autoridades. Intimidaram ambientes repletos de hipocrisia. O documentário denuncia a situação inaceitável do sistema, demonstrando que, para qualquer conforto, é preciso que as vítimas recorram umas às outras ou a seus familiares. O grande mérito, enfim, é mostrar que o problema, além de existir, está muito perto de todos nós.
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