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Crítica


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Sinopse

Crítica

Mais do que um filme, uma jornada. Mais do que uma realização, a concretude de um sonho. Mas do que uma plenitude, uma entrega. São possíveis vários pontos de vista para se dar início a uma análise a respeito dos múltiplos significados de The Man Who Killed Don Quixote (em tradução direta, O Homem que Matou Don Quixote), o projeto que por muito pouco não acabou, literalmente, com a carreira de Terry Gilliam. Apontado por muitos como “o filme mais amaldiçoado da história do cinema”, contou com nada menos do que oito inícios de filmagens ao longo de quase trinta anos de desenvolvimento – o envolvimento do diretor data de 1989! E entre tantos começos e interrupções – as histórias são tão loucas e inacreditáveis que geraram um documentário a respeito, Perdido em La Mancha (2002) – seria mais do que natural que o resultado agora apresentado fosse não mais do que um quebra-cabeças irreconhecível. Felizmente, o que se vê na tela está longe disso, ainda que vislumbre a perfeição em apenas alguns momentos mais inspirados.

Obviamente inspirado no clássico Don Quixote, de Cervantes, Gilliam se propõe a essa releitura contemporânea a partir do ponto de vista de Toby (Adam Driver, excelente), um jovem realizador em meio à produção daquele que pode vir a ser o maior filme de sua carreira. Ele, no entanto, se vê vítima de um inesperado bloqueio criativo, e ao invés de lidar com o contratempo de maneira racional, prefere se refugiar em fugas do set ou no quarto da namorada do produtor. É no meio de uma dessas confusões quando ele se depara com uma cópia pirata de um dos seus primeiros trabalhos, justamente uma tentativa amadora, ainda colegial, de filmar a história de Don Quixote e Sancho Pança. O reencontro com o passado lhe acende uma chama, e termina por iluminar o caminho a seguir a partir daquele momento. Será olhando para o passado, portanto, que acabará descobrindo quais passos dar no futuro.

Essa metalinguagem, entre criador e criatura, obra e autor, se confunde do começo ao fim do filme de Terry Gilliam. Driver, mais do que um alter ego, é também a personificação dos diversos problemas enfrentados pelo cineasta na vida real, agora incorporados ao âmbito da ficção. É impressionante como o vilão da nova saga Star Wars ou mesmo o involuntário herói do contido Paterson (2016) possa se entregar com tamanho desprendimento a uma composição quase que literalmente elucubrada a partir do detalhamento físico. Assim que se depara com os moradores da região, os mesmos que tantos anos antes interpretaram para ele as versões que desejava de personagens icônicos como Dulcineia e o próprio Quixote, o que encontra são versões deturpadas da literatura, seres que vislumbraram instantes de glória e que se recusam a voltar ao obscurantismo de suas vidas pregressas. Para sempre afetadas, elas estavam como que num estado sorumbático, à espera desse retorno que, agora concretizado, deverá servir para apontar novos anseios.

Assim, Toby terá que lidar não apenas com o enredo de um livro que se recusa a abandoná-lo, como também descobrir como achar mais uma vez o rumo da vida que parece ter lhe abandonado, aquela pela qual até poucos instantes declarava sentir apenas enfado, mas que agora lhe soa mais confortável do que nunca. Entre fantasia e realidade, ao lado de um inspirado Jonathan Pryce – que oferece uma composição iluminada de Don Quixote, indo da loucura ao patético em questão de segundos – ele se verá cada vez mais perdido, incapaz de discernir se o que lhe está acontecendo tem espaço de fato no momento real, ou se nada passa de mero fruto da sua imaginação. Gigantes que surgem no horizonte, ou apenas moinhos cumprindo o que deles se espera? Um pouco de cada, e talvez nada disso, como bem aponta a lenda toda vez que cruza o caminho dos fatos.

A impressão que se tem após o término da sessão de The Man Who Killed Don Quixote é a de que Terry Gilliam não chegou sequer a concluir o seu filme. Por outro lado, o que deve ter acontecido é o cineasta ter se dado por vencido, finalmente entregando-o ao mundo tal qual ele assim exigiu se apresentar. É um longa que não se finaliza, mas que adquire forma única, tornando-se independente daquele que se supunha estar no comando da situação. Assim como aconteceu com Cervantes, que se tornou menor que a obra que gerou, esse trabalho também se tornou independente, dono do seu nariz e pronto para conquistar um mundo para chamar de seu. Se entre nós ou numa outra camada de interpretação, bom, essa é uma tarefa difícil de prever. Assim como o personagem que se vê cada vez mais envolto pela ilusão, a ponto de não mais querer dela se desfazer, aqui também se vê o embate entre o físico e o imaginário. Um exercício instigante, ainda que, por vezes, cansativo. Mais do que tudo, é importante estar se preparado para algo bastante particular. Ainda que seja impossível antever um passeio tão singular como o que aqui nos é proposto.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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CríticoNota
Robledo Milani
7
Leonardo Ribeiro
6
MÉDIA
6.5

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