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Sinopse

Mohamedou Ould Slahi é capturado pelo governo dos Estados Unidos logo após os atentados de 11 de setembro. Cidadão mauritano, ele é suspeito de ter se envolvido com os terroristas que conduziram os aviões ao World Trade Center. Mohamedou passa anos detido, sem acusação ou julgamento.

Crítica

O roteiro do O Mauritano funciona com a precisão de uma receita de bolo. Cena 1: Conhecemos o protagonista, o mauritano Mouhamedou Slahi (Tahar Rahim) e a época, logo após os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos. Cena 2: Descobrimos Nancy Hollander (Jodie Foster), ativista pelos direitos humanos e advogada de defesa do homem acusado de terrorismo. Cena 3: Somos apresentados ao Tenente Coronel Stuart Couch (Benedict Cumberbatch), escolhido para representar a acusação do governo dos Estados Unidos contra o réu, em vias de conquistar um habeas corpus. Está armado o tabuleiro para um filme de tribunal, onde cada parte se digladia com as respectivas provas, enquanto Slahi sofre entre polos distintos, detido na prisão de Guantánamo. A vida privada de Nancy, Stuart e mesmo de Mouhamedou é ignorada pela narrativa, preocupada demais com questões de política externa para se buscar a identificação do espectador via sentimentalismo. Por isso, ninguém deseja rever a família, abraçar os filhos e a esposa: a batalha legal se concentra exclusivamente no campo do direito.

Uma primeira surpresa positiva diante de O Mauritano reside no fato de a história tornar o julgamento secundário. O subgênero tende a elevar a tensão até o clímax no tribunal, onde partes adversas lançam suas cartadas finais e algum grande discurso inspirador (do réu, advogado ou juiz) garante a cota emocional. Entretanto, o projeto investe a quase integralidade dos 130 minutos na preparação para este embate ou, mais especificamente, na dificuldade de ambos os advogados em se prepararem. Seria tentador descrevê-los enquanto representantes simetricamente opostos dos direitos humanos e do pensamento punitivista. Ora, o diretor Kevin MacDonald prefere enxergar defesa e acusação como lados dotados de mais semelhanças do que diferenças. Os dois são igualmente prejudicados pela política pouco transparente do governo dos Estados Unidos, que oculta os documentos referentes ao inquérito. Sete anos após a prisão, Slahi desconhece os crimes exatos de que é acusado. Deste modo, a luta de Nancy e Stuart não diz respeito a inocentar ou condenar o réu, e sim a encontrar provas suficientes para construir um caso. Eles lutam, em paralelo, contra uma estrutura contrária às garantias constitucionais.

Embora defesa e acusação possuam suas divergências, o discurso apresenta um ponto de vista unívoco. Em primeiro lugar, ataca as múltiplas práticas de tortura toleradas e/ou incentivadas por George W. Bush. Trocando o scope elegante por uma tela menor, quadrada e claustrofóbica, o cineasta constrói cenas longas e chocantes de abuso físico e psicológico, envolvendo humilhação sexual, impossibilidade de dormir, afogamento, espancamento, exposição a luz forte e música contínua, entre outras formas de “desmontar” Slahi para que confesse a orquestração de 11 de setembro – tendo participado dos planos ou não. Em segundo lugar, ataca frontalmente a instituição de Guantánamo, prisão onerosa e secreta onde uma proporção ínfima de detentos recebeu qualquer tipo de acusação formal, ainda que continuem presos até hoje. MacDonald sublinha a responsabilidade de Barack Obama na manutenção deste sistema, tendo assinado termos que retardaram em sete anos a liberação do protagonista real. O diretor possui um ponto de vista humanitário, sustentando a ideia de que nenhum governo possui o direito de torturar de prisioneiros, independentemente de seus atos. Até por isso, a discussão sobre a eventual conexão do mauritano com a Al-Qaeda é deixada de lado. Para o diretor, na ausência de provas, ele precisa ser solto o quanto antes.

Os atores se entregam ao projeto com convicção. Jodie Foster encarna a advogada verídica no limite entre a benevolência e a arrogância – Nancy defende homens odiados pela opinião pública porque é capaz de fazê-lo, e sabe muito bem explorar as falhas do sistema. Tahar Rahim, ator de origem argelina, evita carregar no sotaque árabe, preferindo uma visão menos estereotipada do muçulmano. Ele alterna entre a calma, a indignação e surpreendente bom humor. Nas sequências de tortura, oferece o corpo à demonstração da barbárie onde o som e as luzes se sobrepõem a qualquer recurso cênico que tenha a oferecer. Benedict Cumberbatch aceita um papel discreto, ainda que interessante por constituir o mais ambíguo da trama, ao passo que Shailene Woodley se contenta em compor a dupla “policial bom/policial mau” ao lado de Foster. É uma pena encontrar Denis Ménochet, um dos atores franceses mais completos em atividade, reduzido a um papel de coadjuvante sem real importância na trama. No entanto, o conjunto coeso impede que qualquer atuação ofusque as demais. A montagem consagra tempo de tela equivalente aos três maiores personagens, em cenas alternadas, para que ninguém seja esquecido pelo espectador.

Enquanto produção política, O Mauritano se rende às fórmulas do espetáculo – vide a trilha sonora de impacto, os símbolos fáceis como o camaleão no deserto, as brigas artificiais (Nancy e Teri, Stuart e Neil) visando reforçar as convicções dos heróis. A configuração possui um caráter funcional, oferecendo uma discussão acessível ao público médio. Além disso, esta obra pode ser considerada mais complexa do que a maioria dos projetos hollywoodianos baseados em direitos civis. Entretanto, exibido no último dia do Festival de Berlim, após dezenas de obras arriscadas e ousadas, o filme é prejudicado pela estrutura padronizada e a condução tão competente quanto impessoal de MacDonald. A obra se destina às premiações norte-americanas e ao público deste país, ávido por um mea culpa servindo de redenção simbólica ao constante intervencionismo dos norte-americanos no resto do mundo. “Reconhecemos o erro, perdão. A vida continua”. É notável que Mouhamedou seja revelado, ao final, como sujeito alegre, sem rancores, e que nenhum oficial seja formalmente acusado pela prisão indevida. O drama apela ao perdão não apenas do réu, mas também de militares que executaram ordens abomináveis com “boas intenções”. Este posicionamento político avança até certo ponto, até encontrar o conformismo e a manutenção do status quo.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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