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Sinopse

Nos anos 1980, Élisabeth se encontra em crise após ser abandonada pelo marido. Ela precisa encontrar um emprego para cuidar dos dois filhos adolescentes, e consegue o cargo de atendente num programa de rádio noturno, "Os Passageiros da Noite", que escuta confissões de pessoas pela cidade. Através dos relatos, conhece Talulah, garota dependente de drogas e em situação de rua. Élisabeth a traz para a sua casa, provocando uma transformação na vida de todos os familiares.

Crítica

A noite possui valores diferentes a cada membro desta família. A mãe Élisabeth (Charlotte Gainsbourg) passa as madrugadas em claro após o abandono pelo marido, temendo as dificuldades financeiras que se anunciam. O filho Matthias (Quito Rayon-Richter) pratica a rebeldia juvenil, pegando a motocicleta e saindo pelas ruas da cidade. Já Talulah (Noée Abita), garota sem família, e dependente de drogas, a noite representa a única forma de existência possível. Ela transita de uma ocupação a um parque, sem reclamar de sua condição. Noites de Paris é movido por certo torpor, pela impressão de que as revoluções sociais se amargaram, e os grandes países se encontram em crise financeira e de valores. A trama se situa nos anos 1980, quando os avanços de maio de 1968 soam distantes, e a perspectiva de um retorno da esquerda ao poder fornece esperanças ao núcleo progressista. No entanto, a estrutura se transforma sem se alterar de fato: a desesperança dos protagonistas é crônica. A noite, neste contexto, desempenha os papéis sucessivos de escapatória, de fuga do real, e de alívio às pressões por performance. Os personagens perambulam por ruas vazias, em busca de nada em particular. O diretor Mikhaël Hers possui evidente carinho por estas figuras falhas, perdidas e introspectivas. Contra a Paris dos românticos, imagina a Paris dos solitários e notívagos.

A este propósito, o drama efetua um belo trabalho de desconstrução do imaginário comum associado à capital francesa. Esqueço os telhados chanfrados, os prédios em estilo haussmanniano, os pontos turísticos: a geografia desta história, a exemplo dos protagonistas, se encontra à margem dos acontecimentos principais. A direção de arte aposta nos cenários retrofuturistas de uma periferia verticalizada, cujo horizonte é tomado por arranha-céus semelhantes entre si, ocupando a vista até dos andares altos. Para qualquer ângulo onde olhe, Élisabeth encontra apartamentos iguais ao seu, onde devem viver pessoas parecidas — embora busque um horizonte de mudanças, encontra o choque com o espelho. O ambiente de cores pastéis, porém saturadas e acolhedoras (há muitas texturas, tapetes, cortinas e tecidos confortáveis no apartamento principal, em oposição ao sótão acinzentado) é reforçado pelas escolhas de direção de fotografia. O brilhante trabalho de Sébastien Buchmann com a película 16mm, e a textura granulada/pixelizada das tecnologias digitais cria um ruído entre gerações, uma aparência de não-pertencimento que retira os familiares do comodismo. Em especial, fornece-se via estética esta impressão de languidez que contamina a experiência como um todo. A trilha sonora em volume baixo, porém constante (reunindo pianos a sintetizadores) elabora a atmosfera de suspensão, com personagens que pairam acima do real. Hers concebe uma classe média deprimida, porém repleta de valores de acolhimento em direção à diferença.

Assim, o texto elimina qualquer forma de espetáculo relacionado à política institucional, ao abuso de drogas e à experiência sexual. A filha Judith (Megan Northam) pratica seus atos de militância longe das câmeras; as substâncias consumidas por Talulah nem sequer serão nomeadas, e o sexo descoberto pelo filho caçula possui um aspecto de doçura. A mise en scène incorpora os elementos da vida pública à intimidade familiar — mesmo quando trabalha na emissão de rádio “Os Passageiros da Noite”, Élisabeth discute a privacidade dos ouvintes, e chega a ter encontros amorosos nas coxias. Na biblioteca, descobre um possível amor, enquanto a garota marginalizada trará um pouco das ruas para dentro de casa. O roteiro equilibra uma quantidade impressionante de conflitos e personagens sem sobressalto, com um ritmo e uma atenção exemplares a cada um deles. Há espaço para o avô, o melhor amigo do filho, a bruta apresentadora Vanda Dorval (Emmanuelle Béart, em construção masculinizada e misteriosa), os colegas da rádio. A direção possui plena consciência de que existe uma sociedade ampla ao redor do enquadramento, muito além do que as câmeras filmam. Ao contrário de tantos projetos onde aparentam existir apenas os eventos produzidos para as imagens, aqui o cinema assume sua postura de fragmento ínfimo do real. O mundo não se adequa ao cinema, e sim o cinema se adequa ao mundo. Os limites entre profissional e pessoal, entre casa e rua, entre ponte e água, entre apartamento e sótão são porosos, feitos para serem borrados.

Charlotte Gainsbourg integra à perfeição este estilo de linguagem. A voz doce e a expressão maleável, entre o cansaço e a ternura, associam seu olhar àquele da direção em geral. Frente a ela, os adolescentes imprimem um ritmo mais enérgico — com exceção de Abita, conduzida habilmente a driblar o estereótipo da drogada obsessiva e frenética. Enquanto a montagem alterna paisagens em digital e 16mm, ela desenha uma França adormecida, ou prestes a acordar, numa representação delicada que jamais ignora as adversidades. É difícil obter tamanha coerência e fluidez entre forma e conteúdo, entre a crítica do sistema e o acolhimento dos personagens. A revelação discreta de uma mastectomia, e os enquadramentos inclusivos dos quatro rostos durante um abraço coletivo reforça o humanismo da abordagem e o posicionamento nobre, entre o pudor e o intervencionismo. Hers nunca se deleita com as dores de seus heróis, nem oferece ao espectador a possibilidade de se divertir, ou se indignar com elas. Ele prefere estender ao público esta abordagem melancólica, um pouco estafada, porém desprovida de julgamentos morais — tal sentimento não seria positivo, nem negativo. Poucos filmes dedicam tamanho esforço para registrar uma sensação, ao invés de um acontecimento. Por trás do banquete de estímulos visuais e sonoros, das sugestões e metáforas, há uma narrativa bastante simples. Este é um cinema onde o prazer reside na linguagem cinematográfica.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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