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Sinopse

É o dia do aniversário de casamento de Yusef, que encomendou uma geladeira nova para a esposa. Este homem palestino vive na fronteira com Israel, onde se encontra a loja mais próxima. Ele precisa apenas atravessar o controle dos soldados para buscar a compra no estabelecimento a poucos metros de distância. No entanto, esta atividade se transforma num dia particularmente difícil para Yusef e a filha pequena.

Crítica

A vida do palestino Yusef (Saleh Bakri) parece calma e feliz, até demais. Ele acorda num dia ensolarado, recebe os afagos da pequena filha e os beijos da esposa amorosa. A manhã desta família representa o ápice da paz – um início típico de projetos que partem do paraíso ao calvário. Visto que o filme precisa de conflitos para se desenvolver (pelo menos, no caso de um drama clássico-narrativo como este), a cineasta britânica Farah Nabulsi logo estabelece seu dilema principal: Yusef precisa atravessar a fronteira de Israel para buscar a geladeira encomendada à esposa, no dia do aniversário de casamento. Ele leva a filha pequena para o passeio, contando com a benevolência dos guardas para agilizarem o processo – afinal, o protagonista atravessa o ponto de verificação diariamente para trabalhar. No entanto, os guardas novatos, sedentos por demonstrar sua autoridade, dificultam a travessia de poucos metros. Está desenhado o cenário para uma jornada simbólica, visando refletir sobre o conflito Israel-Palestina e a arbitrariedade de fronteiras e muros. Os personagens se tornam símbolos: o pai representa toda a Palestina, enquanto os guardas se encarregam do olhar belicoso e autoritário dos israelenses.


The Present (2020) assume seu caráter fabular, sublinhando-o para facilitar a compreensão do público médio. Assim, adota um olhar quase professoral, e mesmo paternalista: a diretora inclui a garotinha na travessia para intensificar o coeficiente emocional da trama, além de recorrer a maniqueísmos: Yusef se converte na vítima de arbitrariedades, ao passo que os soldados se limitam a tipos brutos, munidos pelo espírito de vingança ou, no mínimo, de provocação. A questão dos assentamentos, a evolução de políticas migratórias e a tensão específica das cidades fronteiriças são abandonadas em prol de um teor universalizante – como não se identificar com um pai gentil e sua filha bem-comportada, sendo impedidos de fazer compras na cidade vizinha? Embora apresente uma lógica de enfrentamento, Nabulsi claramente busca a conciliação em tom de otimismo. Em outras palavras, ela alerta para a existência de um complexo problema, solicitando em seguida, através da jornada emocional, que ambos os lados cessem com a guerra infundada. Trata-se de um projeto benevolente, ainda que simples em sua percepção sociopolítica.

No papel principal, Saleh Bakri empresta a aparência de homem comum, com o olhar fechado, e quase emburrado, à figura do pai de família. O ator havia demonstrado igual desenvoltura com seus personagens em A Banda (2007) e A Fonte das Mulheres (2011), duas outras fábulas sobre os conflitos entre nações e sexos. Desta vez, ele é conduzido a um registro mais maneirista do que de costume: na segunda metade, destinada ao retorno para casa, a diretora solicita que o ator carregue nas tintas e reforce a indignação. Bakri cumpre com o prometido, porém com certo desconforto: o ator se sai melhor na ambiguidade do que em demonstrações exemplares de pregação política. Dentro da narrativa, nenhum outro ator ganha oportunidade de desenvolver seu personagem para além dos arquétipos: a filha ingênua, o soldado impulsivo, o vendedor gentil. O curta-metragem poderia crescer caso houvesse espaço para reflexão geográfica, histórica e social para além do impasse com os militares. No entanto, a simplicidade o aproxima da perspectiva infantil: “Era uma vez um homem que queria comprar uma geladeira para a esposa, mas guardas não o deixavam passar”. Longe de implicar em desconhecimento do tema, a simplificação constitui uma estratégia consciente do discurso: a diretora busca se comunicar especialmente com quem desconhece os choques seculares entre ambos os países.

Assim, The Present transparece as virtudes e os defeitos de um filme para exportação, incluindo o naturalismo convertido em espetáculo rumo ao final, a discussão política pelo filtro dos sentimentos e a tendência a eliminar particularidades locais. É possível imaginar este projeto em formato de longa-metragem, retratando as difíceis travessias de todos os membros da família, e torcendo para que um dia os muros sejam retirados. O curta-metragem possui boas ideias (o próprio título internacional, que significa tanto o “presente” no sentido de objeto ofertado a alguém quanto uma medida temporal) e belas escolhas estéticas (a impecável montagem de som durante a espera na fila pela travessia). Nota-se a preocupação de filmar pontos de verificação reais na fronteira, e de construir cenas verossímeis da compra da geladeira e do passeio no supermercado. Entretanto, tamanha facilidade na evocação do cotidiano é deixada em segundo plano diante da preocupação didática em introduzir o problema pela primeira vez ao espectador. Ora, quem seria o interlocutor ideal deste projeto? A criança que talvez se sensibilize com a dor do outro, crescendo mais tolerantes, ou os adultos ignorantes em geopolítica, carentes de informação sobre a causa palestina? Como os palestinos se enxergariam neste retrato tão afetuoso quanto fatalista? O filme desperta mais elementos de debate sobre as escolhas cinematográficas da diretora do que sobre a opressão contra os palestinos.

Filme visto online no 30º Festival Curta Cinema, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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