Crítica
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Sinopse
De passagem por Paris a fim de fazer o exame para uma escola renomada, um jovem provinciano conhece uma garota com a qual inicia um relacionamento.
Crítica
Quando se diz que o cinema francês consiste em casais apaixonados em preto e branco dizendo “Eu te amo” a cada cinco minutos, transando, fumando e filosofando na cama com uma trilha sonora de pianos e um narrador literário, este parece corresponder ao clichê mais redutor da cinematografia do país europeu – a não ser que a pessoa em questão esteja falando sobre O Sal das Lágrimas (2020), novo filme de Philippe Garrel. Neste caso, todos os itens acima estão presentes, com alguns acréscimos: as pessoas que se apaixonam à primeira vista, os números musicais cafonas, os longos fades anacrônicos, as heroínas que declaram a gravidez um minuto antes de o herói se mudar para uma nova cidade. Em seu exagero, o romantismo defendido pelo diretor transita entre o cinema clássico e o melodrama folhetinesco.
No centro desta trama se encontra um herói detestável. Luc (Logann Antuofermo) conhece várias mulheres jovens, compromete-se com elas de uma maneira ou outra (promete vê-las em viagens, engravida-as) e depois desaparece, porque não está disposto a lidar com isso. O pai carinhoso e idoso (André Wilms, de longe o melhor elemento do filme inteiro) faz uma operação em Paris, mas o filho não pensa em visitá-lo no hospital, nem acompanhar a cirurgia. Não haveria qualquer problema em retratar o típico macho conquistador se o discurso do filme o confrontasse a outros pontos de vista e o inserisse num contexto social mais amplo. Ora, o roteiro faz questão de enxergá-lo como a grande vítima dessa história porque, afinal, “ele nunca descobriu de fato o que é o amor”. Garrel não acompanha as ex-namoradas abandonadas, por não se importar com estas personagens. Quando acena a uma possível abertura progressista do herói, garante que ele tenha suas vontades preservadas rumo ao final, fruto de uma cena de invejável manipulação emocional (a monogamia imposta no ápice do período de luto). Luc se aproxima do namorado abusivo ao culpar as amantes por suas próprias irresponsabilidades: “Olha o que você me fez fazer!”.
Em outras palavras, “O Sal das Lágrimas” (em tradução literal) é um filme profundamente machista. Ele poderia retratar homens machistas sem se filiar ao pensamento deles, o que seria louvável enquanto visão crítica, no entanto, o discurso toma partido de Luc, perdoando-o pelo sofrimento familiar e tolerando seu comportamento inconsequente em nome do imperativo da autodescoberta. Neste cinema antiquado, as mulheres são vistas nuas o tempo inteiro, em imagens longas e frontais, enquanto os homens sequer revelam o torso. Elas são carentes e sentimentais, apaixonando-se pelo garanhão na primeira noite, enquanto Luc troca de mulheres como quem troca de roupa (assim que chega na escola de carpintaria, passa a flertar com uma colega). Elas declaram seu amor na manhã seguinte; ele não responde. O pior é sugerir que Betsy (Souheila Yacoub), terceiro alvo do jovem irresistível seria “uma mulher como ele”, nas palavras do narrador, ao manifestar o desejo de ter um relacionamento a três. Ora, a garota é transparente com todos os envolvidos e jamais os abandona. Luc engana todas as suas mulheres e as deixa depois. Sugerir que ambos adotam as mesmas “liberdades” corresponde a um raciocínio mais do que questionável.
Em pleno 2020, pensando nas demandas nos novos tempos, seria possível sugerir que este representa um filme exemplar do privilégio branco, ou então o portfólio para o cinema branco, heterossexual, rico e conservador. Afinal, as pessoas existem apenas para amar ou ser amadas, sem qualquer outro conflito econômico ou político digno de nota – a sociedade ao redor não existe. Uma breve inserção sobre o racismo contra um amigo de Luc soa deslocada por não encontrar eco em qualquer outra parte da narrativa, como se fosse um pensamento a posteriori. Por mais que se respeite a longa e rica cinematografia de Philippe Garrel, fica difícil tolerar esta obra em nome do respeito sepulcral ao grande autor de cinema (um pensamento, em si mesmo, algo conservador). Este filme sobre os tempos de hoje, que cita tablets e outras tecnologias sem utilizá-las, soa como uma produção dos anos da Nouvelle Vague – o que, neste caso, não representa um elogio. Fazer um filme inspirado em décadas anteriores pode produzir belos resultados; efetuar um filme saudando as deliciosas relações sociais da metade do século passado soa muito menos divertido.
Os “jovens turcos” da Cahiers du Cinéma utilizaram o termo “cinema de papai” para criticar as produções pomposas e pouco arriscadas dos anos 1930 e 1940 na França, preferindo o despojamento das obras urbanas, de câmera na mão, praticadas por Truffaut, Godard e Rohmer pouco tempo mais tarde. Ironicamente, Garrel, herdeiro direto desta forma de cinema, pratica o que hoje se tornou o novo cinema de papai francês, uma reafirmação tragicômica do estereótipo burguês da cinematografia nacional. Ainda mais irônico seria pensar que o diretor é de fato pai de Louis Garrel, ator e cineasta, que também faz filmes sobre amor e também apresenta triângulos amorosos, por sua afiados, mordazes e profundamente ligados aos nossos tempos. Dois Amigos (2015) e Um Homem Fiel (2018) satirizam a potência masculina enquanto reforçam a autonomia feminina; já O Sal das Lágrimas demonstra carinho por esses tempos de homens ocupando o espaço público enquanto mulheres os esperam nos espaços domésticos. Um abismo separa estas duas formas de olhar para o cinema e de olhar para o mundo.
Não se sugere, como nos tribunais instantâneos de tempos de redes sociais, que se “cancele” Garrel pela obra. O diretor já efetuou filmes belíssimos, tanto pela vertente política quanto pelos retratos amorosos, e pode continuar a fazê-los nos próximos anos. Ao mesmo tempo, a condescendência com o veterano em função de sua idade, status ou da qualidade das obras passadas seria igualmente irresponsável. “Talvez ele esteja sendo apenas irônico”, sugeriu um crítico de cinema na saída da sessão, para aliviar a expressão atônita dos colegas. É possível. No entanto, não existe nada óbvio no suposto distanciamento adotado em relação aos personagens e à linguagem. O cineasta parece acreditar piamente nas virtudes do pianinho dedilhado a cada cinco minutos (enquanto os ruídos ao redor se calam), na suposta beleza intrínseca do preto e branco, no charme esperado das sucessivas conquistas de Luc e na ideia que, à sucessão mulheres manipuladas e abandonadas, pode-se atribuir o nome de amor.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 2 |
Marcelo Müller | 8 |
MÉDIA | 5 |
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