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Sinopse

Uma jovem estudante de cinema se apaixona por um sujeito instável. Pouco a pouco, ela cede aos apelos de um jogo amoroso perigoso, isso enquanto tenta encontrar um rumo na carreira.

Crítica

Em O Desprezo (1963), Jean-Luc Godard entremeia brilhantemente uma crise matrimonial e as tantas dificuldades para transpor o clássico Odisseia, de Homero, à tela grande. Além de assim transitar entre o caráter épico do poema e a natureza prosaica dos infortúnios do casal, o cineasta franco-suíço aproxima de modo lírico os gestos amorosos e o ato apaixonado de fazer cinema. Em O Souvenir, a diretora Joanna Hogg parece almejar, a priori, um caminho semelhante, mas logo empurra a narrativa no sentido diametralmente oposto. Julie (Honor Swinton Byrne) é uma estudante de cinema britânica que, em plenos anos 1980, acalenta o desejo de fazer um filme de cunho íntimo com tintas sociais. Nele, a geografia das docas decrépitas de uma localidade litorânea serviria de pano de fundo essencial a uma trama centrada em dependências emocionais. No começo, ela defende com ardor sua ideia, explicando a amigos e possíveis facilitadores o porquê, inclusive, se distanciar tanto da própria experiência – vem de uma família de situação economicamente confortável – a fim de estrear na condução de um longa. Ao enamorar-se por Anthony (Tom Burke), isso tudo esvanece.

Ao contrário do filme de Godard, portanto, aqui o envolvimento sentimental acaba divorciando a protagonista de sua versão realizadora empenhada e resoluta. À medida que esquadrinha esse romance cercado de algumas indeterminações bem distribuídas, O Souvenir se atém cada vez menos ao cinema, senão ocasionalmente, relegando-o a uma nota de rodapé nesse processo de transformação de Julie numa personagem acomodada em sua nova posição passiva. Antes, ao demonstrar engajamento com o desejo pela Sétima Arte, ela soa emancipada sentimentalmente, segura de suas convicções, tanto as artísticas quanto as pessoais. Depois, ao mergulhar num relacionamento estranho que parece consumi-la silenciosamente, acaba revelando uma faceta fragilizada pela incapacidade de regular as próprias condutas. Joanna Hogg constrói um percurso em que o namoro e o fervor pelo cinema não evoluem simultaneamente, uma vez que se anulam essencialmente. A estudante passa a ser relapsa na academia, isso quando frequenta as aulas. Embora coadjuvante, Anthony gradativamente se torna uma figura instigante, nutrida de mistérios, casca onde não sabemos o que habita.

O Souvenir é embebido de doses cavalares de fleuma. Isso gera a apatia que demarca frequentemente sua narrativa repleta de elipses – algumas das quais bem dispostas –, numa estrutura avessa a reações imediatas e ações peremptórias. Evidentemente, há uma artesania no alinhave dos fragmentos que dão conta dessa modificação de Julie, mas também, em semelhante medida, espaços à sensação de impassibilidade contraproducente, sobretudo quando pensamos que o filme fala de paixões ora se sobrepondo, ora se anulando. Como se fosse uma novata, a experiente Joanna Hogg explicita reflexões que poderiam surgir nas entrelinhas, especialmente as ligadas a conceitos de cinema. Num momento sintomático, aspirantes a cineastas conversam impunemente sobre as vicissitudes da produção francesa, citando uma oposição entre a turma da Nouvelle Vague e o, naqueles anos 80, frescor da pegada hollywoodiana de Luc Besson. Embora seja absolutamente crível dentro daquele contexto, o diálogo soa como uma tese inserida na transição a fórceps.

Anthony assume o arquétipo do enigmático irremediavelmente fadado a danação. Seu vício em heroína serve ao suspense, mas igualmente ao drama, pois é utilizado para substanciar as dúvidas de Julie acerca da confiabilidade do elo pelo qual penhora seu eu cinematográfico. Há, na verdade, um fiapo de história, que poderia ser resumido em: garota se apaixona por garoto e, nesse ínterim, coloca em xeque sua vocação de artista. O Souvenir não é estritamente um filme de personagens, embora tal leitura possa parecer contraditória. Todavia, ela é possível a partir da percepção de que as pessoas são pouco escrutinadas para além de determinados modelos aos quais são filiadas. Sempre que o enredo ameaça ler a relação da protagonista com a mãe, Rosalind (Tilda Swinton), o breque é pressionando e volta-se a uma bem-vinda tentativa de privilegiar as lacunas. Importantes são as circunstâncias, a atmosfera, a turbulência do processo criativo. Pena que, ao contrário de Godard, Joanna Hogg prefira separar cinema e amor, entendendo-os como dissociáveis.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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