Crítica
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Sinopse
Abandonada no meio do deserto, a Mulher Negra se depara com perigos inomináveis ao conseguir se libertar.
Crítica
O que é “bondade”? E por quê essa expressão, mais um sentimento do que algo concreto, necessitaria “sobreviver”? Eis a questão proposta de imediato pelo diretor e roteirista Rolf de Heer, que quebra um hiato de quase uma década com The Survival of Kindness (algo como “A Sobrevivência da Bondade”). Em seu filme, não há tempo para longos discursos ou para distrações que não levam a lugar nenhum. Pelo contrário, a impressão é que tudo aquilo colocado em cena possui um significado específico – de outra forma, não estaria ali. Essa economia, por assim dizer, aumenta o entendimento de uma obra arriscada, por vezes até mesmo difícil, que parte da ausência de diálogos compreensíveis – as poucas trocas verbais, quando manifestadas, se dão em uma língua aparentemente inventada, ou de difícil compreensão, e sem o auxílio de tradução ou legendagem – para justamente aumentar seu alcance junto ao público. É pela radicalização que o discurso se vê ampliado. Assim, a luta de uma mulher por se fazer valer e ouvir acaba sendo a de toda uma civilização. Se essa merece ou não seguir viva, é uma decisão que cabe ao todo, e não apenas ao indivíduo. Ao contrário do que esse filme propõe, repercutindo seu efeito tanto no conjunto como no singular.
A mulher negra, ou BlackWoman (como é creditada no final), não é a primeira figura a ser encarada pela câmera. Mas é a que irá dominar as atenções assim que se fizer presente. Até lá, no entanto, há um caminho a ser percorrido. O abrir dos olhos se dá em um vilarejo destruído, pessoas abatidas e o retrato do que resta quando a guerra se vai. Mas essa, como esclarecido em seguida, é uma alegoria, uma representação: trata-se de um bolo de aniversário, e o que se mostrava como casas destruídas e homens caídos nada mais eram do que enfeites da cobertura. Uma faca atravessa cada camada do doce, e uma generosa fatia é reservada. Não se trata, porém, de uma festa comum. Todos os presentes usam máscaras antibombas, e se vestem quase iguais uns aos outros. Há um evento em andamento, seja em escala local ou global, mas que tem afetado gravemente a condução do cotidiano. Um encontro banal, como se percebe, soa grotesco aos olhos não preparados.
Logo alguns se separam do grupo, saem à rua e é quando a Mulher Negra surge, de dentro de uma gaiola, enclausurada por seus captores. Dois os três desses partem com ela, no meio da noite, parando apenas no dia seguinte, em pleno deserto. Lá a deixam, ainda presa, e partem. O cenário desperta inúmeras questões. Seria um teste? Em que período do tempo e espaço estaria essa ação ocorrendo? Passado ou futuro? Ou, pior ainda: seria no presente, ainda que imaginado, igualmente possível? Seria ela vítima de um jogo perverso, ou estaria tão perdida quanto aqueles no lado de cá, sentados curiosos na audiência? Dependerá apenas dela ceder, e se permitir perecer diante de um sol imperdoável, ou encontrar os meios de sair dali e lutar pela continuidade do seu existir. Sem ninguém a vigiando e com todo o tempo do mundo a seu favor – ou ao menos enquanto conseguisse suportar tais condições que lhes são sujeitas – ela acaba dando um jeito. Uma vez solta, precisa decidir para ir. E quando não se tem direção certa a tomar, qualquer uma é tão boa quanto as demais.
Não há nada mais decepcionante do que o segundo após à chegada ao cume. Para os alpinistas, o desejo e o sonho reside no preparo, na ansiedade, na subida e nas dificuldades que essa pode ou não apresentar. Uma vez lá em cima, assim que a celebração do feito alcançado se encerra, o único caminho possível é a descida. E o inevitável recomeço que virá depois. A Montanha – um dos títulos internacionais dessa produção – é uma parábola aos desafios e enigmas que aos poucos vão pontuando a jornada da protagonista. Ela precisa garantir o próximo respiro, fugir da peste que toma conta da região e, acima de tudo, se livrar do homem branco que vê naquele que lhe é diferente causa e resposta das suas dores. O inimigo tem cor. Portanto, é preciso se tornar um deles para continuar sendo como sempre foi. Mas o que a move: o caminho a ser percorrido e a luta contínua para se manter em pé, ou um destino em particular? Após tanto andar em círculos, a resposta lhe cairá sem demora. E se para longe muito se pensa estar, voltar soa cada vez menos uma má ideia.
Rolf de Heer não está preocupado em mastigar uma ou outra mensagem e muito menos em garantir o entendimento por parte do espectador. Sua responsabilidade aqui está no que anseia por ser dito. É o emissor, portanto. Como sua expressão será percebida, portanto, diz respeito a cada um daqueles dispostos a com ele buscar uma comunicação. Dessa forma, The Survival of Kindness ganha pontos não tanto por tudo que acerta, mas pelos riscos assumidos e pela disposição em sair de um lugar comum que a muitos atrai, mas que pouco tem de novo a oferecer. Eis aqui um cinema inquieto, provocador, interessado não em discutir o óbvio, mas em confrontar até mesmo a mais básica das certezas. Com muito a propor e pouco a responder, busca essas contrapartidas através da união das forças, permitindo que suas dúvidas sejam tanto as dos personagens como as daqueles que a esses acompanham. Abrir mão do que lhes é mais precioso, por vezes, parece ser o único a ser feito. E quando a segurança vem do maior dos sacrifícios, qual alento irá restar? Ao menos espera por uma não-conformidade sadia, que talvez não saiba bem onde ir, mas tem ciência do que não quer consigo trazer. Um bom começo, melhor do que muitos tem a oferecer.
Filme visto no 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2023
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