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Crítica


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Sinopse

Aspirante a político na Toronto do fim do século XIX, Mackenzie está confuso, com o coração dividido entre uma heroína de guerra e uma complicada solteirona. Ele vai aprender as agruras do amor não correspondido.

Crítica

Pode levar algum tempo para o espectador se acostumar com as imagens, luzes e cenários de The Twentieth Century (2020). Para a sua fábula corrosiva sobre a política canadense – ou talvez seja melhor dizer, sobre a política partidária em qualquer lugar do mundo – o diretor Matthew Rankin não se contenta com o jogo de diálogos e piadas, privilegiando o humor da construção imagética. O personagem principal não seria exatamente Mackenzie King (Dan Beirne), homem rico e mimado, criado desde a infância para se tornar Primeiro Ministro canadense, e sim a estética do filme, que não hesita em chamar atenção para si mesma. O espectador se depara com um formato de janela próximo do quadrado (1.37 : 1), uma textura de imagem que remete à película antiga, luzes estouradas típicas de uma captação antiga, além de cenários teatrais, desenhados em estúdio. Desde o início, o filme clama pelo direito ao artifício em oposição ao naturalismo.

Talvez o estilo visual possa ser descrito pelo controverso termo de “retrofuturismo”. Por um lado, os desenhos geométricos em cenários de fundo infinito, com cores brancas representando a neve e pequenas animações sugerindo a movimentação de personagem em teleféricos, remete às representações expressionistas do cinema mudo. O Gabinete do Dr. Caligari (1920) e Metrópolis (1927) são algumas das referências evidentes para o filme, exploradas pelo potencial de estranhamento em relação ao realismo do cinema atual. Ao mesmo tempo, a iluminação em neon (com destaque para a belíssima sequência do labirinto) e o jogo de espelhos remete a uma forma de cinema que só poderia existir muito depois dos trabalhos de Robert Wiene e Fritz Lang. Em outras palavras, a produção de 2020 evoca o cinema de cem anos atrás, sem procurar mimetizá-lo. A própria colagem pop de elementos dispersos atesta a qualidade de um cinema inerentemente contemporâneo.

O humor também possui traços particulares. Pela quantidade de mulheres barbadas ou homens idosos usando vestido e tranças, aproximamo-nos de um cinema de aparência inocente, ainda que corrosivo em sua representação dos corpos. Monty Python torna-se o horizonte evidente de Rankin ao fornecer, por exemplo, a imagem de um grande cacto que ejacula quando o protagonista se masturba, ou o submundo fetichista para amadores de botas femininas. Ridiculariza-se os homens de Estado, ou talvez seja melhor dizer, os homens brancos, heterossexuais e poderosos em geral. A competição entre os candidatos pelo cargo de Primeiro Ministro – uma hilária sequência de “chaves de perna” e outras provas absurdas – trata de satirizar os rituais destinados a consagrar apenas homens, todos muito semelhantes, em cargos de chefia. O moralismo dos governos conservadores é bem representado pelo desejo incontrolável de Mackenzie pelos sapatos femininos (ainda que se trate de coturnos de aparência bastante viril). Existe uma provocação constante com o gênero e a sexualidade.

Ao mesmo tempo, o humor ousa tocar em temas corrosivos, como a doença de crianças órfãs e o conservadorismo por trás da progressista nação canadense. Um dos principais méritos de Rankin reside na capacidade de ser ao mesmo tempo ultrajante e lúdico – em meio à atmosfera de sonhos, por onde caminham homens infantilóides, encontra-se uma mistura interessante de crítica mordaz com ingenuidade. O diretor jamais aposta em imagens-choque, tampouco demonstra o gosto pela violência. Não por acaso, as representações de sexo e morte são as mais pudicas e absurdas, descoladas da realidade, enquanto os atores efetuam composições verossímeis, sem a necessidade de sublinhar um humor evidente por si próprio. Enquanto constrói um produto de qualidades raras para o circuito comercial – é difícil imaginar um filme como este nas salas brasileiras – o diretor investe numa forma de humor inteligente e provocadora.

O que dizer do resultado enquanto metáfora política? Por mais simples que seja a sugestão de que o poder se encontra na mão de homens corruptos e incompetentes, e de que a tentativa de moralizar a política se confronta à promiscuidade dos governos, The Twentieth Century torna-se político em sua desconstrução dos cenários, dos espaços e do tempo. O marco temporal escolhido – o ano de 1899 – nos prepara para uma visão catastrófica do século que viria, como atesta a inesperada conclusão, um tanto amarga para um feel good movie. Ao mesmo tempo, a união entre a linguagem do início do cinema com sua vertente mais moderna garante o componente metalinguístico do discurso – esta não deixa de ser uma reflexão sobre a evolução do próprio cinema. Em sua brincadeira de aparência despretensiosa, Rankin demonstra precioso controle da mise en scène e do ritmo (vide a belíssima cena entre Mackenzie e a enfermeira, espelhados em diversos ângulos), desenhando um cinema que encontra suas ferramentas políticas na linguagem do entretenimento.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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