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Crítica


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Sinopse

Ao testemunhar o vizinho traindo sua esposa, Pippa e Thomas discutem se têm o direito de meter o bedelho. Eles se sentem cada vez mais interessados pelas coisas intensas que acontecem do outro lado da rua.

Crítica

Existem filmes que de tão importantes viram verdadeiros paradigmas. Exemplo disso, o clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) é lembrado quase automaticamente por muitos espectadores sempre que há reflexões existencialistas sobre a condição humana em jornadas espaciais. Da mesma forma, alguém espionando os outros através de uma janela, por meio de uma teleobjetiva e/ou de um binóculo, remete imediatamente a Janela Indiscreta (1954). Em Observadores, o cineasta Michael Mohan demonstra ter plena consciência desses processos associativos. Para começo de conversa, a existência de certas alusões visuais nos permite imaginá-lo afirmando orgulhosamente: “sim, estou estabelecendo um diálogo proposital e hiperestilizado com o cinema de Alfred Hitchcock. E para isso ele não se restringe às imagens dos protagonistas rapidamente seduzidos pela vida “picante” dos vizinhos do prédio da frente. No longa seminal do bom e velho Hitch, o voyeurismo do personagem de James Stewart serve de metáfora à disputa velada entre esse aventureiro solteirão convicto a não se casar e a sua namorada empenhada em fazê-lo mudar de ideia. Aqui também há um relacionamento no centro de tudo. No entanto, Thomas (Justice Smith) e Pippa (Sydney Sweeney) são vistos a partir do momento em que dão o passo de alugar um cantinho próprio, assim se colocando no rumo da maturidade que lhes falta.

O que primeiro sobressai em Observadores é que Tom e Pippa têm um modo bastante peculiar de interagir entre si. Eles naturalmente infantilizam o dia a dia: se tratam por apelidos fofos e conversam mais como se fossem confidentes do que casados. Essa dinâmica é reiterada pelo cineasta como algo importante a ser notado. E, de fato, é muito relevante perceber esse traço insólito, sobretudo por ele ser oposto à tônica oferecida pelo casal fogoso do apartamento da frente. Sabem aquela máxima "a grama do vizinho é sempre mais verde"? Ela não apenas é sugerida, mas discutida literalmente num diálogo específico, cuja função escancarada é questionar a resignação/submissão como objetivo dos opressores. Já o intrincado jogo de desejos, exposto nas cenas eróticas, é fomentado sob o disfarce da simples curiosidade. Numa noite em que espionam furtivamente (no escuro) os desconhecidos transando, Tom e Pippa são tomados pelos sortilégios do tesão e decidem transar ao utilizar o binóculo. É Pippa quem propõe trepar enquanto ambos testemunham os estranhos trepando, chegando ao cúmulo de pedir a Tom que imite a cadência do outro homem durante a penetração. E ela sutilmente lamenta a menor vitalidade do seu parceiro. Logo, o “pulo do gato” referente às intrigas mora na frustração feminina não mencionada, mas desencadeada pelos acontecimentos entrelaçados.

Num primeiro momento, Observadores soa como mais um longa-metragem sobre voyeurismo, cujo epicentro é a jovem oftalmologista (foco na profissão dela) que não consegue se desvencilhar do prazer quase mórbido de enxergar sem ser enxergada. No entanto, existem outras proposições menos ostensivas abaixo das camadas narrativas superficiais. E elas preenchem as ações com um tipo de estofo misterioso, próximo do interditado/perigoso. No começo da “brincadeira”, Tom e Pippa parecem igualmente excitados com o acesso ilegal à intimidade alheia. Consciente ou inconscientemente, aqui o cineasta Michael Mohan repete um procedimento fundamental de Veludo Azul (1987). Na obra-prima dirigida por David Lynch, também temos um casal infantilizado que encara como travessura aceitável o ato de penetrar a casa de alguém (sem autorização) para descobrir segredos. Jeffrey (Kyle MacLachlan) e Sandy (Laura Dern) se tornam simbolicamente adultos ao ter contato com lado feio e menos óbvio da cidadezinha, precisamente ao transgredir as regras vigentes. Aqui, a personagem de Sydney Sweeney – grande figura do elenco, numa interpretação ótima por ser calibrada pelo tom maneirista do filme – demonstra um anseio motivado pela inexperiência. Ela provavelmente se sente impelida a quebrar as leis pois, como anuncia o comportamento “fofo”, nunca fez isso antes.

O cineasta Michael Moran trabalha bem a construção desse suspense progressivo que não radicaliza a imobilidade como Janela Indiscreta. No filme de Hitchcock, somos convidados a partilhar das restrições impostas ao protagonista e subvertidas pela capacidade do dispositivo ótico de compensar as limitações naturais (alcance da visão) e as circunstanciais (perna quebrada). Em Observadores, embora parte da ação aconteça de modo parecido, com Tom e Pippa juntando peças do quebra-cabeça a partir do "ver sem ser visto", a câmera se desloca por ambientes diferentes. Temos Pippa trabalhando; a entrada no apartamento durante a festa à fantasia; a conversa com a intrigante que mora do outro lado da rua; etc. Nesses momentos o cineasta habilmente encena situações que podem parecer excessos e/ou conveniências. Realmente, dentre todas as óticas da cidade, a mulher observada tinha de entrar naquela em que trabalha a sua observadora? Elas precisavam estabelecer um vínculo praticamente imediato? Certas coincidências não parecem uma grandessíssima forçada de barra? Pois, é uma grata surpresa constatar que esses “erros” são pequenos avisos de que as aparências enganam, de que talvez estejamos num terreno mais pantanoso do que nos é levado a crer. Para os fãs do famigerado plot twist, esse delicioso longa-metragem guarda uma bela guinada fervida com requintes maneiristas, ou seja, hiperestilizando valores narrativos que foram se tornando clássicos com o tempo e a repetição.

Tom perde a importância à medida que consegue sair do transe voyeur encarado como droga potente e altamente viciante. As atenções precisam permanecer em Pippa. Essa jovem pretende esquentar a relação infantilizada do casal (ao surgir com uma provocante camisola, enquanto Tom dorme); ela estabelece uma sincronia simbólica com o casal do prédio à frente (ao transar com o namorado no ritmo imposto pelo fotógrafo bonitão, atlético e mulherengo); ela insiste em interferir no cotidiano dos desconhecidos (avisando da infidelidade, querendo se intrometer a todo custo). Portanto, a protagonista de Observadores é realmente Pippa, a que não verbaliza as enraizadas frustrações sexuais que transbordam em gestos e reações dúbios. Num momento, a personagem de Sydney Sweeney parece determinada a abrir os olhos da mulher traída. Um pouco adiante, passa por cima da culpa para consumar algo inconfessável. No fim das contas, provoca a tragédia, dizendo para si mesma que era motivada pela solidariedade feminina, mas na verdade era guiada por seu inconsciente cheio de desejos ambíguos. Quando achamos que entendemos tudo, nosso tapete é repentinamente puxado de novo. Além disso, num cenário cada vez mais pausteurizado (o do cinema feito para o streaming), é uma gratíssima surpresa esse filme sem vergonha do sexo e que utiliza as transas performáticas dentro de um contexto narrativo coerente. Exibicionismo e fetiche são ingredientes vitais desse prato apimentado.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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