Crítica


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Sinopse

Faruk é um garoto pobre, morando num conjunto habitacional com a avó doente. Um dia, ele conhece Mona, filha de um rico político da região, e os dois se apaixonam. A família dele faz o possível para proibir os encontros da garota com o pequeno traficante. No entanto, eles possuem um lugar especial onde podem ficar longe de todos: uma fortaleza branca.

Crítica

The White Fortress (2021) se abre sobre a imagem imponente de um gigantesco conjunto habitacional de cor branca na periferia de Sarajevo. As residências de classe média-baixa constituem o local onde vive Faruk (Pavle Čemerikić), jovem sem pais, e responsável pela avó doente que passa os dias prostrada no sofá. Ele pratica pequenos roubos e vendas de droga para se sustentar. Inicialmente, a “fortaleza branca” constitui este espaço, até ser substituída por outra, de caráter mais literal e concreto e, ironicamente, fruto de uma história imaginária. Faruk também cede gentilmente o protagonismo a Mona (Sumeja Dardagan), garota por quem se apaixona. A narrativa se inicia apenas com o jovem, então equilibra a vida de ambos num segundo ato, para se concentrar apenas na jovem ao final. É possível dizer que a verdadeira fortaleza se revela apenas no último terço, ou então sugerir que, a exemplo do herói, ela se transmuta durante a experiência, passando do lugar realista até demais (um centro de tráfico e prostituição) ao espaço imaculado, ocupado apenas pelos amantes adolescentes. Neste filme, a paisagem urbana se metamorfoseia diante dos nossos olhos.

“É estranho, como se nós fôssemos personagens de um conto de fada”, afirma a garota. “Parece mais o começo de uma história de terror”, contesta o garoto. Esta indefinição entre polos resume o filme de modo geral. O diretor Igor Drljača recusa as ferramentas fáceis do romance idealizado: a imagem desliza constantemente de um cômodo ao outro, em zoom in ou zoom out nos personagens como se procurasse algo escondido. Esta ferramenta própria do suspense se encontra com outro elemento de mistério: a duração estendida dos planos, durante períodos de silêncio. Ao final de cada interação entre Faruk e Mona, o plano se estende sobre uma viela vazia à noite, ou sobre a arquitetura que os cerca. Tem-se a impressão de que alguém surpreenderá os dois, ou algo será descoberto ao se ampliar o quadro. Há pouquíssima trilha sonora, e passagens importantes como a morte de um familiar são representadas em silêncio total. O cineasta introduz estranhamento até na das construções mais icônicas do romance: o beijo entre os amantes ao pôr do sol. Neste momento, a câmera se ergue aos céus, o tempo se acelera e uma avenida tem seus carros transformados em algo próximo de um rio. O sentimento amoroso está longe de um senso de finalidade: o filme não é construído para o amor dos dois, pelo contrário. A vida continua, violenta, e ambos precisam inserir os encontros nas brechas que lhes são possíveis.

A direção de fotografia é deslumbrante. Não há uma cena sequer, por mais curta ou banal, sem um cuidado extremo de iluminação, composição e movimentos de câmera. A profundidade de campo, o contraste, o flare e demais elementos são pensados de modo a intensificar a agressão do cotidiano (vide a luz dos encontros contrastados de Faruk com os patrões) e suavizar a interação entre os adolescentes, ao limite do sonho (o idílio no campo, escalando árvores). O apartamento onde vive a avó doente carrega uma luz triste, fria, em composição que remete às pinturas renascentistas. Já os diversos olhares do garoto, seja de surpresa, tristeza ou raiva sofrem alterações de proximidade da câmera e ponto de vista (seja o motorista dentro de um carro de luxo, o vizinho fofoqueiro no andar de cima, ou o olhar espião de Mona, de dentro de um shopping center). “O amor é um luxo”, brada o herói, o que condiz tanto com o andamento do roteiro quanto com a construção imagética. Todo afeto cobra seu preço aos personagens em cenas seguintes: o cuidado com uma garota abusada se desdobra numa cena pessimista, o beijo na fortaleza se converte num instante de vazio, e o carinho com a senhora doente se transforma numa cena de desolação.

Igor Drljača, cineasta apaixonado pela arquitetura (vide The Stone Speakers, 2018), permite que os espaços se tornem personagens autônomos, e bastante tristes por si mesmos (o apartamento que se esvazia, o prédio abandonado ao final). Ele insere esta história de transformações sobre um fundo de manipulação político-partidária e uma memória opressora da Segunda Guerra Mundial, revista com insistência por Faruk na televisão. O filme pode ser considerado uma tentativa de releitura simbólica desta cidade, que ocupa o imaginário internacional graças à guerra. Desta vez, Sarajevo se converte em terra de afetos e sonhos, com fortalezas mágicas e o ciclo da vida representado por filhotes de cachorro. Talvez The White Fortress seja uma fábula com tons de Romeu e Julieta (o namoro proibido entre a jovem rica e o jovem pobre) e acenos a princesas clássicas, isoladas no alto de um castelo, esperando pelo príncipe. No entanto, poucas estruturas fabulares ousam ser tão lacônicas e desesperançosas. Amores entre jovens e nascimento de cachorrinhos costumam indicar otimismo, porém neste caso, estamos distantes de uma perspectiva favorável aos protagonistas e seus sonhos de fuga.

O resultado impressiona pela elegância da condução, a precisão da montagem e a rica articulação de símbolos. Em uma das sequências de sonho, a imagem da guerra sangrenta se alterna com o rosto impassível de Pavle Čemerikić, e então com um terceiro plano: a comida pouco apetitosa oferecida ao cachorro. Esta articulação kuleshoviana se torna tão simples quanto complexa – não se espantaria se a montagem deste filme viesse a ser estudada pelos amantes do close reading na Academia. Drljača combina a paixão cirúrgica pela concretude e pelos monumentos com um primeiro amor, provocando um interessante caso em que as paixões se atenuam e os edifícios se humanizam. O diretor parte de uma sinopse convencional, que poderia ceder espaço a uma viagem melodramática, turística ou idealizada sobre a Bósnia. Para a nossa surpresa, prefere nos oferecer uma viagem de inquietação, onde as certezas se dissipam na cena seguinte. Ao final, talvez Faruk e Mona não tenham passado do sonho projetado por um e outro. Em algum momento, necessariamente, este sonho se termina, restando apenas as ruínas de uma fortaleza e aquelas de um conjunto habitacional pobre.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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