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Quem não conhece a tia Virgínia? Ou, melhor dizendo, quem não conhece uma tia Virgínia? Pois é com essa certeza, a respeito do quão universal tal personagem pode ser, que Fabio Meira desenvolve Tia Virgínia, segundo longa-metragem de sua filmografia, o primeiro desde o bem-sucedido As Duas Irenes (2017). Afinal, essa que aqui ganha um nome que significa “virgem” ou “donzela”, tanto pode ser chamar de Maria ou Adelina, Isabela ou Francisca, Iró ou Nadir: toda grande família possui uma dessas por perto, aquela tia solteirona que acaba tendo que carregar nas costas o fardo de cuidar dos pais ou de algum outro parente menos favorecido, assumindo uma responsabilidade que, se compartilhada, talvez nem fosse tão pesada, mas que sob as atenções de uma só, termina por lhe roubar qualquer instinto de individualidade ou mesmo liberdade. Mas Virgínia está disposta a reverter esse quadro em que se encontra. E, portanto, deverá lutar até o último minuto, reunindo as forças que lhe restam para evitar que tal destino a ela se abata. É sobre isso essa noite, uma reunião como tantas outras, mas que guarda mudanças e protestos capazes de alterar mundos e solidões. Do mais amplo espectro ao mais individual dos cenários. Uma jornada que vai sendo construída com cuidado, resultando em um filme nunca menos do que transformador.
É véspera de Natal, e Virgínia espera, enfim, pelo aguardado reencontro com as irmãs Vanda e Valquíria. Vera Holtz, apesar da longa carreira, nunca teve em mãos uma protagonista no cinema tão rica e repleta de camadas quanto a anfitriã que aqui apresenta. Longe de se mostrar como uma figura pronta, aquela presença apagada que geralmente se espera desse tipo de companhia, a que abaixa a cabeça e desempenha suas funções sem muito barulho ou alarde, Virgínia é dona do seu nariz e percebe ter ficado calada por muito tempo. É chegada a hora de, enfim, dizer o que pensa. Abrir a boca e deixar que a voz saia. Seja na direção da irmã mais velha, ou em conversa com a caçula. Motivada pelo sobrinho, ou pela sobrinha. Frente a um segredo do cunhado, ou mesmo diante da mãe entrevada, que há anos nada diz, apenas observa. A casa está pronta, a ceia foi encomendada, a divisão dos quartos foi definida. Agora, resta esperar pelos convidados e arrumar o vestido, o mesmo dos tempos da formatura, que ainda serve, necessitando apenas de alguns ajustes. O suficiente para se mostrar novo mais uma vez. Assim como ela.
Valquíria (Louise Cardoso, que vem experimentando um processo de redescoberta desde 45 do Segundo Tempo, 2022) é a primeira a chegar. O marido não a acompanha, a filha viajou por conta própria, e somente o filho vem junto. Vanda (Arlete Salles, em um registro distinto, ainda que passe por situações similares àquelas vistas em Amigas de Sorte, 2021) vem mais tarde, com marido e filha, mas também com uma mala cheia de problemas: o esposo doente, o filho ausente, uma distância física e emocional que durou por muito tempo e custou a ser vencida. Quando as três, enfim, estão sob o mesmo teto, a impressão de quem as observa, seja de longe – do lado de cá da tela – ou de perto – as demais personagens – é que nada mais importa. São mais do que planetas, são estrelas de órbitas próprias, que brilham de modo tão radiante que chegam a eclipsar o resto que as circunda. Vanda quer paz e ser perdoada. Valquíria está disposta ao embate, pois acredita que a razão está ao seu lado. E Virgínia, o que quer? Existir.
Esse apagamento, que por anos se manteve, é a força que agora a move. Está determinada, e sabe que não pode mais esperar para agir. Fabio Meira entende que a urgência dos seus diálogos vai aumentando à medida que o desenrolar da história se aproxima de um clímax agendado: a ceia será o momento de encontrarem em torno da mesma mesa que conhecem desde a infância, e segredos e dissimulações não poderão mais empurrados para debaixo do tapete. Aliás, esse está secando lá fora, pois alguém esqueceu de colocar uma fralda na matriarca. Sim, essa é uma responsabilidade de outro, pois Virgínia começou a se despedir desde o início do dia. Sabe bem o que fazer, precisa apenas esperar pelo momento certo. Nem que para isso tenha que seguir vestindo o pesado casaco de peles que ficou de herança. Não irá ceder mais. E essa decisão, que parece afetar a todos, compete apenas a si, e a mais ninguém. Verdades serão ditas, passados revistos, conceitos reformulados. A mulher que só mantinha uma garrafa d’água e meio tablete de manteiga na geladeira provavelmente tinha uma vida mais rica que as daquelas que se agarram a uma certeza cada vez mais frágil. E chegou a sua vez de recuperá-la.
Vera Holtz nasceu para ser Tia Virgínia, tanto pelo humor que permite transparecer a cada fala enunciada, como também pelas segundas intenções que esconde por trás de uma simpatia calculada. A atriz se mostra à vontade tanto gargalhando até cair, como nos enfrentamentos movidos por rancores mal resolvidos ou anseios nunca realizados. Arlete Salles e Louise Cardoso não ficam para trás, compondo um trio de acertos e afinada sintonia, mais pelo não dito do que pelas passagens nas quais tentam almejar uma falsa tranquilidade nunca alcançada. Com participações luxuosas de Antonio Pitanga e Vera Valdez (que chegou a filmar com Roberto Santos e Walter Hugo Khouri), o elenco se mostra um dos maiores méritos dessa obra tão provocadora quanto envolvente. Mas talvez não tanto quanto o roteiro que abraça sem ressalvas ou hesitações, com cada um em cena tomando para si um ser pulsante e inquieto, os dramas e insatisfações desse, e a disposição para o enfrentamento que volta e meia emerge de um mergulho profundo para se mostrar válido e urgente. Tão pequeno e singelo, e ao mesmo tempo gigante e de fácil identificação. Mais do que presenciado, eis aqui um filme para ser vivido.
Filme visto em agosto de 2023 durante o 51º Festival de Cinema de Gramado
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Minha gente!!!! Essa Virgínia existe, sou mesmo kkk, não vejo a hora de ver minha vida na telinha kkkk. Só não tenho as irmãs no mas tudo bem parecido.