Tiger Stripes
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Amanda Nell Eu
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Tiger Stripes
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2023
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Malásia / Taiwan / França / Alemanha / Países Baixos / Singapura / Catar / Indonésia
Crítica
Leitores
Sinopse
Aos 12 anos, Zaffan descobre um segredo aterrador sobre o próprio corpo, justamente quando se torna a primeira entre suas amigas a atingir a puberdade. Discriminada pela comunidade, ela aprende a sobreviver e a revidar.
Crítica
Vencedor do prêmio principal da Semana da Crítica do Festival de Cannes deste ano, Tiger Stripes é um filme malaio protagonizado por uma jovem apresentada aos desafios de crescer. Zaffan (Zafreen Zairizal) é um espírito livre e alegre, por isso mesmo com potencial para ser tachada de problemática pelo entorno religioso, obscurantista e muito tradicional. Ao ser gravada com o celular pelas amigas, como qualquer menina de sua idade, tira o hijab e dança alegremente à câmera, sem preocupações com reprimendas e afins. Zaffan é uma moleca. No entanto, tudo muda quando ela tem a sua primeira menstruação, algo natural no ciclo da vida de quase todas as mulheres, mas encarado como episódio repleto de tabus por essa sociedade que claramente tende a classificar a feminilidade como perigosa. A primeira referência que vem em cabeça diante do longa-metragem de estreia de Amanda Nell Eu é Carrie: A Estranha (1976), pois nele igualmente temos a jovem que sofre bullying das colegas após a primeira menstruação, inserida num núcleo opressor e cujo revide se dará por meio de um aspecto fantástico. Carrie desenvolvia poderes telecinéticos com as mudanças físicas/hormonais, Zaffan começa a se transformar num tigre. A simbologia é óbvia, mas funciona bem: a animalidade é a manifestação extrema da natureza feminina e como tal não deve ser estigmatizada e muito menos reprimida.
Amanda Nell Eu faz uma alegoria pop, talvez para angariar a atenção justamente da plateia que está na faixa etária da protagonista. Em vários momentos de Tiger Stripes, as personagens são vistas interagindo com celulares, registrando momentos de descontração e fazendo dancinhas para postagem posterior em suas respectivas redes sociais. No entanto, como contraponto dessa contemporaneidade hiperconectada, temos a manutenção de velhas tradições patriarcais reproduzidas sem muita reflexão por mulheres e meninas e, sem dúvida, homens. Não à toa a mãe de Zaffan é bem mais rígida do que o pai da menina, sujeito calmo e compreensivo. O nervosismo da mulher é associado à íntima consciência do que sua filha sofrerá no mundo absolutamente masculino, enquanto o homem não precisa fazer força, pois a realidade coletiva é moldada ao seu gênero. Assim como fizera John Hughes em filmes como Clube dos Cinco (1985) ou Curtindo a Vida Adoidado (1986), a realizadora malaia também encara a escola como parte ativa dessa sociedade castradora, vide as manifestações de professoras e da diretora que às vezes assumem um caráter cômico de tão ridículo. Desse modo, sem orientação no colégio e com poucos diálogos domésticos, Zaffan fica sozinha nesse árduo processo de transformação. Assim, evidentemente é bruta a conexão com a animalidade que exterioriza a sua natureza.
Especialmente depois que a mutação de Zaffan em animal começa a tomar forma, Tiger Stripes repete certos apontamentos e fica alguns minutos andando meio em círculos, ressaltando aquilo que parecia já estabelecido (a hostilidade das colegas, por exemplo), demorando um pouco para avançar rumo ao seu desfecho. Em vários momentos, as mudanças físicas das protagonistas poderiam ser perfeitamente descoladas do universo fantástico, mas aí entra uma exorbitância calculada justamente para afirmar que há algo além da normalidade. Por exemplo, as dores são alusivas às cólicas menstruais, a fome voraz e as marcas alérgicas no corpo poderiam ser manifestações comuns relativas às alterações hormonais. Porém, Amanda Nell Eu não deixa qualquer dúvida a respeito dessa metamorfose da menina no animal que é o símbolo nacional da Malásia, sinônimo de bravura e força na cultura local. Também dentro dessa comunicação de Zaffran com a sua natureza e o seu entrono, surgem as visões de espíritos florestais. Não fosse o obscurantismo construído pelo machismo para controlar os corpos femininos, essa conexão profunda da protagonista com seres fantásticos e com a própria animalidade aflorada poderia ser enxergada como uma dádiva. Ou ainda como um acesso privilegiado às camadas mais complexas e fascinantes de uma conexão humana com as dimensões espiritual e biológica.
Ainda que às vezes pareça um pouco indecisa (ou reticente) entre radicalizar a metamorfose de Zaffan e cozinhar um pouco mais esse processo antes da ampliação a um recorte mais amplo de personagens, Amanda Nell Eu faz uma alegoria muito interessante dessa puberdade encarada como perigosa, especialmente dentro de religiões caracterizadas por uma tradição asfixiante. Além disso, é fundamental o aproveitamento das mitologias filipinas, bem como dos contextos sociais locais, para alcançarmos uma diversidade na abordagem desse período conturbado que marca a saída da infância e a iminência da vida adulta. Toda a sequência com o charlatão que reivindica ser chamado de doutor é indicativa do discurso perigosíssimo e secular que atribui às mulheres uma aura perigosa e aos homens a capacidade de curá-las e/ou dominá-las para um suposto bem comum. A decapitação promove uma catarse bem-vinda nessa história em que Zaffan vai aprendendo aos poucos a controlar a raiva e sua consequente sede de sangue – é indicativo que ela sofra depois de assassinar gratuitamente um sapo, cuidando de seu enterro improvisado, e demonstre tanto desdém pelo homem sem cabeça que dizia ter o poder de lhe devolver à “normalidade” (ao caminho de submissão, no caso). Essa estreia promissora de Amanda Nell Eu se apropria do fantástico para alegorizar a natural busca feminina por liberdade.
Filme visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023)
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