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Crítica


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Sinopse

Assassinado por linchamento aos 14 anos, Emmet Till se tornou símbolo de uma luta. A mãe do garoto começa uma batalha pública por direitos civis nos Estados Unidos dos anos 1950.

Crítica

A cena de abertura é suficiente para um estudo profundo a respeito do que a diretora Chinonye Chukwu almeja com Till: A Busca por Justiça. A câmera abre no rosto da protagonista, vivida com excelência por Danielle Deadwyler. Enquanto dirige, cantarola a canção que toca no rádio do carro. Há no seu olhar, no entanto, um misto de alegria e preocupação. Um leve movimento e o foco passa a se dirigir ao seu lado, espaço ocupado pelo filho, Emmett Till. O rapaz, por sua vez, esbanja despreocupação, e entoa a plenos pulmões a música que ouve. A mãe, portanto, o acompanha. Mas, também, por ele teme. Um letreiro irá anunciar em breve o local e a data da ação: Chicago, 1955. Período no tempo e espaço revestido de avanços, mas não completamente isento de percalços quanto ao valor dos direitos humanos e o combate ao racismo, seja ele estrutural ou mesmo cotidiano. Essa, portanto, é uma mulher de origem distinta daquela experimentada até então pelo rapaz. Sabe bem de onde veio, o que sofreu, quanto lhe custou sair de lá, e o quão fácil pode ser se deparar mais uma vez com as mesmas ameaças. E por isso, cada momento como esse, por mais banal que se apresente, se vê revestido de um esforço e de uma luta que não pode ser ignorado. Tais quais os méritos que este filme, sem pressa, porém com assertividade, vai apresentando.

Serão raros aqueles que chegarão a este longa na ignorância quanto ao que ele se propõe. Afinal, trata-se de um episódio histórico, público e notório. O Till do título é o menino, nome que herdou do pai já falecido, morto em combate durante a Segunda Guerra Mundial. A mãe, portanto, é tudo o que tem, e vice-versa. Não mais do que um garoto da cidade, nascido e criado em um ambiente civilizado e diverso, não completamente mergulhado em preconceitos e costumes que em tantos causa cegueira. Mesmo assim, é importante que conheça suas origens. E é atrás delas que parte ao embarcar em um ônibus rumo ao Mississippi, no sul dos Estados Unidos, para passar alguns dias de férias com tios e primos. A avó e familiares incentivam a visita. A mãe, no entanto, tem dois corações: se por um lado reconhece o quão importante é esse contato – e conhecimento, até mesmo para a formação do filho – por outro se vê aos poucos dominada pelo medo. Aquela é uma terra que via pessoas como eles – negros, portanto – como seres inferiores. O preconceito dominava, e bastava um passo em falso para que tudo fosse perdido. Exatamente o que Bo – seu apelido de criança – acabará, inadvertidamente, fazendo.

Nem é tanto o que fez, mas como seu gesto foi visto. Chukwu, também autora do roteiro ao lado de Michael Reilly e Keith Beauchamp (diretor do documentário The Untold Story of Emmett Louis Till, 2005, que primeiro resgatou essa história), não se exime em ilustrar essa passagem – um elogio à dona da mercearia, uma mulher branca que se sentiu ofendida pela “ousadia” de um rapaz negro se dirigir a ela – assim como também sabe que está na imagem a força destes acontecimentos. Bo foi pego no meio da noite, arrancado da cama que o tio havia lhe oferecido, e levado por homens desconhecidos. Ficou horas sendo torturado, e quando mais nada nele resistia, terminou jogado em um rio. O encontraram dias depois, completamente deformado. Porém, na mesma semana de sua chegada, todos os noticiários se ocupavam com os bárbaros assassinatos de dois homens negros em circunstâncias similares às que viriam a se repetir com ele. Ou seja, não havia nada de excepcional em sua morte. A carne negra é a mais barata do mercado, disse com propriedade, muito tempo depois, Elza Soares.

Quando adentra no necrotério, a mãe é alertada pelo legista que o corpo que irá ver pode estar irreconhecível. Ela demonstra concordância, e pede que se levante o lençol. Nesse instante, o enquadramento está distante, com o cenário completo, e uma barra de metal ocupa parcialmente o falecido. Porém, assim que é descoberto, um corte de edição não permite sequer um respiro, e a audiência é confrontada junto com aquela mulher com o que restou de seu filho. O choque é imediato, mas não gratuito. Afinal, será essa visão que terminará por fazer diferença. Indo contra tudo o que se esperava, ela concorda que fotos sejam feitas e, principalmente, divulgadas. Tem-se o início de um grande movimento de conscientização social. Quando algo se torna frequente, não mais nele se presta atenção. Mas um rosto deformado é inédito. E, portanto, precisa ser encarado, com as dores e as angústias que carrega. Mais do que uma denúncia, é também um aviso. Mamie sabia o que estava enfrentando, e sua disposição em ir atrás do que acreditava é que deu início a uma engrenagem rumo à mudança. Por mais tardia que essa, por (muitas) vezes, tenha se mostrado.

Assim como em seu longa anterior – o impressionante e sutil Clemência (2019), estrelado por Alfre Woodard – Chukwu deixa sob responsabilidade de sua personagem principal grande parte da narrativa. E a novata Deadwyler, se não tinha histórico que indicasse tamanha destreza, encontra aqui seu ponto de virada. Conhecida por ter participado de séries como Watchmen (2019) e Station Eleven (2021-2022), aqui se faz presente em 90% das cenas, indo do desespero à fúria, da raiva engolida à perspicácia em oferecer a resposta certa no momento mais apropriado. Há muito da direção em seu trabalho, é certo, mas está na atriz também a importância de reconhecer o limite entre o descontrole e o exagero, conseguindo se colocar na fronteira entre um e outro sem, no entanto, perder o controle. É na perda dessa mãe, no seu reencontro com forças que até então desconhecia e na determinação em se fazer ver e ouvir que Till: A Busca por Justiça justifica sua presença, por mais que trilhe caminhos conhecidos – o drama de tribunal, a maldade dos ignorantes, o alerta por mudança – em grande parte de sua narrativa. Enfim, trata-se de um episódio que não pode ser ignorado, que ganha vida através de uma atuação hipnotizante, fruto de uma condução ciente do que pode – e precisa – alcançar.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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