Crítica
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Sinopse
Tina Turner relembra os melhores e piores momentos de sua carreira, desde a infância, numa fazenda onde colhia algodão com os pais, até os primeiros passos na música, a parceria com Ike Turner, o caso de abuso doméstico e a reinvenção enquanto artista solo.
Crítica
Na primeira cena de Tina (2020), a cantora afirma que não gostaria de atuar num eventual filme sobre a sua vida, porque prefere deixar os momentos tristes para trás. Em pelo menos duas outras oportunidades, extraídas de materiais de arquivo, ela faz declarações semelhantes sobre o desejo de superar os abusos sofridos. Em meia dúzia de entrevistas, amigos e biógrafos da carreira de Tina Turner sublinham a vontade da cantora em abordar temas diferentes da violência doméstica, preferindo se concentrar na música. O trauma é evidente, e seria impossível compreender a grande artista sem entendermos o caminho pelo qual passou. No entanto, o documentário dirigido por Dan Lindsay e T.J. Martin adota uma estratégia contraproducente ao concentrar seus esforços na reconstituição dos inúmeros casos de maus-tratos sofridos durante o relacionamento com Ike Turner. O título é gentil ao sugerir apenas “Tina”, sem o “Turner” herdado do ex-marido. Esta abordagem poderia indicar uma releitura da mulher longe da constante menção ao homem com quem foi casada. Mero engano: o foco deste projeto se encontra na vida privada da cantora.
“É sério que precisamos falar sobre isso?”, ela reclama durante uma entrevista, 30 anos após o divórcio, quando lhe questionam sobre Ike. Trechos equivalentes são incorporados pela montagem. Aparentemente, tudo com o que a protagonista sempre sonhou foi adquirir sua independência simbólica da imagem de vítima de espancamentos. Ora, pelo menos dois terços deste filme são dedicados aos períodos pré-Ike, junto a Ike e pós-Ike. O termo abuso doméstico é mencionado na primeira cena. No capítulo sobre a família de Tina Turner, descobrimos pouco sobre os filhos, a mãe e a infância na fazenda de algodão em Nutbush, mas bastante a respeito do ex-marido. No capítulo “Retorno”, descobrimos como o corte de cabelo, a roupa e o estilo musical se distanciaram daquele concebido inicialmente pelo ex-esposo e produtor. Quando menciona o novo marido da cantora, Erwin Bach, o filme sobrepõe depoimentos de Tina a respeito de Ike Turner ao rosto do atual companheiro. As raras aparições dos filhos adultos versam sobre – adivinha? – o temor que sentiam pelo pai, e a raiva que passaram a nutrir por ele desde pequenos. O roteiro escolhe estes dezesseis anos, numa carreira de muitas décadas, como irônico fio condutor para retratar a protagonista.
“Mas e a música?”, pode-se perguntar. Ela está presente, ainda que em segundo plano. Descobrimos as canções que representaram fortes guinadas no estilo de Tina Turner – quatro ou cinco músicas apenas. Os cineastas evitam os registros de ensaios, a evolução da voz particular da cantora, a mudança de sua apresentação no palco, a relação com os demais músicos, o contato com os fãs. Desconhecemos as suas principais referências artísticas, o contato prévio com o cinema antes de Mad Max: Além da Cúpula do Trovão (1985), a opinião sobre os programas de televisão familiares no qual aparecia em tempos de dificuldade financeira, ou ainda a reflexão a respeito de sua fase “Las Vegas Girl”. Esqueça as cenas da arrista discutindo arranjos musicais, questionando letras, formando o conceito de álbuns. De onde veio tal traquejo para as danças? Não se sabe. Em contrapartida, conhecemos passo a passo da noite em que pegou uma mala de mão, atravessou uma avenida movimentada, quase sendo atropelada por um caminhão, registrou-se num hotel barato e fugiu do marido pela primeira vez. A propósito, os diretores viajam até o hotel, filmam a recepção e incluem uma sequência de flares para sugerir o quase-atropelamento. O filme possui um curioso senso de prioridades.
Em termos de produção, trata-se de um “documentário blockbuster”, como se esperaria de uma obra da Universal Pictures. Há inúmeros materiais de arquivo raros, gravações restauradas, além de entrevistas bem produzidas e iluminadas com Tina Turner, Angela Bassett, Oprah Winfrey e outras celebridades. Cada conversa com ex-colegas de trabalho e produtores musicais se realiza em espaços impecavelmente fotografados e enquadrados. Por ser um filme a respeito da música, o tratamento sonoro seria particularmente exigido. O resultado cumpre as expectativas com captação de som direto e mixagem pouco criativos, porém sem falhas. O documentário ostenta um ritmo agradável, sem tempos mortos nem repetições para além da questão matrimonial. Lindsay e Martin tomam a precaução de equilibrar os momentos tristes com cenas divertidas e muitas dezenas de fotografias digitalmente recortadas da cantora. O resultado deve ser bastante apreciado pelos fãs. Caso a artista possua qualquer defeito de temperamento ou no tratamento com os colegas, por exemplo, estes elementos terão sido descartados. Os diretores preferem a narrativa de queda e ascensão de uma vítima.
O esmero técnico não impede a produção de recair em alguns excessos. A montagem repete duas vezes um frame específico de Ike Turner, quando o olhar baixo sugere vilania e perversidade. Qualquer imagem do artista em pose taciturna é utilizada pelo menos duas vezes para sublinhar seu caráter nocivo. Já as raras fotografias pensativas de Tina Turner são exploradas para sugerir a dor oculta. A interpretação soa excessiva, mesmo desonesta, nesta releitura descontextualizada de fotografias antigas. O filme decide visitar a nova casa da cantora na Suíça, efetuando um passeio por cada cômodo suntuoso, com uma trilha em estilo conto de fadas, antes de se concluir com violinos afetados e laudatórios. A direção se enfraquece ao insistir em sons, imagens e discursos, na tese maniqueísta. Ora, a discussão sobre o abuso poderia adquirir um caráter social e reflexivo, ao invés de ser considerado um problema individual, mera falta de caráter ou “doença”, como indicam algumas vozes. Pelo menos, existe a artista cantando, dançando e revelando à câmera, do alto de seus 82 anos, que um de seus primeiros encontros com Erwin terminou com a frase: “Quando estiver de volta à cidade, venha fazer sexo comigo”. Tina Turner, mulher livre e artista multitalentosa, é muito maior do que os maus-tratos sofridos décadas atrás.
Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 5 |
Daniel Oliveira | 7 |
MÉDIA | 6 |
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