Crítica
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Sinopse
Em Tipos de Gentileza, três histórias se conectam pelo absurdo do ser humano. Um homem (Jesse Plemons, premiado como Melhor Ator no Festival de Cannes) em conflito consigo mesmo após assumir o controle de sua própria vida. Um policial que se nega em aceitar o fato de que sua esposa, dada como afogada, teria retornado para casa. Uma mulher decidida a encontrar uma pessoa específica com uma habilidade especial.
Crítica
O que é ser gentil? Como definir um ato de carinho, de desprendimento, de atenção que não movido por um interesse pessoal, mas desprovido de intenções outras senão o bem do próximo? Alcançar tal definição pode ser mais difícil do que se imagina, ainda mais para aqueles que se dedicarem a uma identidade possível por meio de um conceito absoluto, sem se restringir a uma ou outra leitura. Exercício esse destinado à insatisfação, visto o descompasso entre o esforço exigido pelo seu entendimento e a simplicidade do gesto que a partir dele possa gerar múltiplas interpretações. Tipos de Gentileza é mais um manifesto do que uma ação fechada, com início, meio e fim. Com esse desabafo, Yorgos Lanthimos se revela disposto ao debate, investigando situações consideradas limítrofes para alguns, disparatadas para tantos, mas não impossíveis, muito menos improváveis – por mais absurdas que se apresentem. O discurso, no entanto, não está num contato inicial. E essa é a constatação que serve de chave não apenas para seu proveito, mas como justificativa do seu impressionante alcance.
A Morte de R.M.F.
Na história que abre a antologia, Robert tem uma tarefa simples a cumprir. À noite, antes de chegar em casa e após ter saído do trabalho, deverá acelerar a ponto de colidir com o carro conduzido por R.M.F. Assim as coisas acontecem, porém os resultados ficam aquém do esperado. Uma nova chance lhe é dada, mas ele teme: não quer ser responsável pela eventual – aliás, bastante provável – morte do outro motorista. Ele não conhece R.M.F, mas esse recebeu um gordo pagamento naquela mesma manhã, e está ciente do risco que corre. Mas isso não importa à Robert. Ele não quer carregar essa culpa. E com sua negação, o mundo que até então conhecia vem abaixo. A mulher o abandona, é mandado embora do emprego, os amigos lhe viram a cara. Conseguirá começar do zero, ou voltar atrás em sua convicção? Será essa frágil o suficiente para ser alterada a partir do instante em que percebe que o afetado passa a ser ele, e não o desconhecido? Num jogo em que se colocar nas mãos de um outro parece ser o caminho para a felicidade e realização pessoal, até que ponto o livro arbítrio e a responsabilidade por suas escolhas determina o caráter do indivíduo?
R.M.F. Está Voando
Daniel está desolado. Sua esposa foi dada como desaparecida, provavelmente morta em um naufrágio durante uma expedição de trabalho. Ele segue suas atividades como policial, e os colegas, muitos ocupados justamente com a busca pela mulher, tentam acalmá-lo. E não é que estavam certos? Após alguns dias, a encontram em uma região remota, com fome e mais magra. Ter sobrevivido ao acidente, pelo que parece, foi um milagre. Mas Daniel, após um entusiasmo inicial, descobre não estar feliz. Pois aquela que voltou para casa, apesar de idêntica em muitos aspectos, não é com quem casou. E a cada dia tem mais certeza disso. A amiga que teve o marido resgatado não o entende. O colega de trabalho não acredita em seus argumentos. Porém, sua crença é tamanha a ponto de solicitar algo inimaginável a quem agora está o seu lado. E essa, ao ceder, apenas aumenta sua certeza. Pois não é na concordância onde reside a afinidade. E a falta de compreensão dela apenas aumenta a convicção do homem que segue sozinho, a espera de alguém que talvez nunca retorne.
R.M.F. Come um Sanduíche
Emily está determinada a encontrar a pessoa que há tanto busca. Essa seria uma mulher pura, capaz de demonstrar uma habilidade especial. E com isso, sua missão estaria completa. Andrew – que a acompanha na mesma tarefa – não concorda com tamanha facilidade. Emily, porém, não desiste. E quando Rebecca aparece afirmando ser sua irmã a pessoa que os dois procuram, a busca parece ter se encerrado. Mas há um detalhe: no sonho, aquela pela qual tantos esperam não apenas é gêmea, como agora se encontra sozinha, após a que nasceu ao seu lado já ter falecido. Algo, portanto, não se encaixa. Assim como o marido e a filha pequena que Emily deixou para trás ao ingressar na seita comandada por Omi e Aka. Aceitar o pedido de uns não entende abrir mão da convivência com outros? Agradar a si, a quem a ela tanto oferece, ou aos que dela exigem e cobram? Quando R.M.F. decide fazer um lanche na beira da estrada, não estava preparado para o molho de tomate vazar e sujar sua camisa. O vermelho se espalha, como sangue que não estanca. Como a vontade que não se sacia. Como o desejo de atender os interesses dos demais, esquecendo-se de si no processo.
Yorgos Lanthimos foi indicado ao Oscar por três dos seus filmes anteriores, curiosamente obras mais dispostas ao diálogo e próximas de uma narrativa linear e compreensível. Em Tipos de Gentileza, no entanto, abre mão de alguns destes artifícios facilitadores para mergulhar na estranheza, por mais que os recursos que empregue nesse processo sejam convencionais e bastante diretos. Para tanto, conta com as parcerias renovadas de Emma Stone (excepcional no terceiro ato) e Willem Dafoe (assustador por meio de um sorriso que mais esconde do que revela), ao mesmo tempo em que agrega ao seu pequeno teatro de horrores da intimidade humana nomes como Jesse Plemons (que justifica sua premiação em Cannes principalmente por sua atuação no capítulo de estreia) e, em menor escala, Hong Chau, Margaret Qualley, Joe Alwyn e Mamoudou Athie. A coesão do elenco se reflete também nessa proposta ousada, na qual a perseguição por paralelos entre os três contos também se reflete numa compreensão mais ampla de cada um dos sentidos envolvidos. Poderia ser apenas bizarro. Mas é também selvagem como um animal enjaulado, desesperado por algo que não se sabe ao certo, incompreensível diante de qualquer contato mais superficial. E, acima de tudo, provocador como qualquer obra que se propõe a fazer diferença, e não apenas transitar por zonas de conforto.
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