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Sinopse

Taróloga que enrola os clientes com a ajuda de seu marido, Fátima topa com um valioso anel roubado. Decidida a ficar com a joia apesar dos riscos, ela precisa fugir de bandidos e voltar à sua terra natal: São Luís, no Maranhão.

Crítica

É um tanto surreal a noção de que cinema nacional seja apenas aquele ambientado em São Paulo e, no máximo, no Rio de Janeiro. Como se todos os demais – o gaúcho e o pernambucano, o mineiro e o brasiliense, o cearense e o baiano, e assim por diante – fossem imediatamente realocados em uma subcategoria, a do “cinema regional” (o que não pode ser mais equivocado). Em um país de dimensões continentais, urge se ver na tela representações catarinenses e amazônicas, capixabas e mato-grossenses, goianas e acreanas – e, claro, também maranhenses. Esse, aliás, talvez seja o maior dos méritos de Tire 5 Cartas, uma comédia que busca declaradamente uma comunicação popular, voltada a um público maior e diverso, e que cuja maior parte de sua trama está ambientada em São Luiz, uma das capitais menos vistas – e mais interessantes – de todo o nordeste brasileiro. Diego Freitas, o diretor, deixa de lado o ambiente paulistano dos seus dois longas anteriores para acompanhar uma atrapalhada trambiqueira em uma volta às origens por sua terra natal, oferecendo, assim, um novo vigor a uma figura que até então era naturalmente associada ao cenário carioca. Uma mudança discreta, mas que termina por dar ao conjunto um diferencial de peso.

Lília Cabral é um dos maiores nomes da televisão. Porém, desde Divã (2009), não recebia no cinema uma personagem à altura do seu talento. Fátima, então, lhe chega em boa hora. Ao deixar a casa da família para partir em busca do sonho de ser cantora, ela aos poucos teve que se adaptar ao tão criticado (e, ainda assim, praticado) “jeitinho” que fez a fama dessa nação. Casada com Lindoval (Stepan Nercessian, roubando a cena a cada aparição), aprendeu a se virar não com o que ambicionava, mas com o que, de um jeito ou de outro, conseguiu: ela se tornou uma cartomante das não mais confiáveis, enquanto que ele atua nas noites em bares e churrascarias como cover do Sidney Magal. Esse flerte com a música – a ambição dela era ter uma carreira tão gloriosa quanto a de Alcione – não se restringe apenas às falas e aos desejos dos protagonistas: está também na maneira como o realizador elabora o universo ao redor deles. Com uma magia lírica, há desde um coro improvisado até passagens de sonho nos quais os protagonistas decidem soltar o gogó, não como de fato são, mas como um dia imaginaram ser capazes. Um devaneio que não dura frente ao choque da realidade, mas ao menos permite uma brincadeira interessante e divertida.

Em meio a um dos tantos golpes improvisados que aplica em seus clientes de ocasião, Fátima acaba cruzando com o caminho de dois irmãos mais investidos na cobiça do alheio, por assim dizer. De ambos, não, mas de apenas um deles – e o mais tapado, veja só! O bandido de bom coração – esse, por si só, outro tipo facilmente reconhecível nesse ambiente de farsa – vivido por Gabriel Godoy até teme as constantes ameaças que recebe do cabeça da dupla (Allan Souza Lima, sem muito o que fazer além de servir como contraponto ao clima leve da narrativa), mas não resiste a qualquer um que chegue até ele de modo mais autoritário: como faz a vizinha que o recebe por engano e, sem esperar por suas explicações, acaba por prestar o atendimento ao qual havia se proposto. Uma vez terminada a sessão, um pagamento é exigido, e o que fica sobre sua mesa é um anel de valor maior do que o imaginado. Uma vez de posse do que não lhe pertence, não pensará duas vezes em partir carregando o marido consigo rumo aos parentes do Maranhão. Provocando, assim, apenas uma mudança de rumo, tempo esse necessário para retomar os laços com a irmã e sobrinho, enquanto aqueles que roubaram a joia e a querem de volta não aparecem no seu encalço.

A estrutura, como se percebe, é mera desculpa para as interações entre os personagens. O melhor do roteiro desenvolvido por Melina Dalboni (A Paixão Segundo G.H., 2023), Gustavo Pinheiro e Julia Antuerpem – uma maioria feminina, outro detalhe a ser observado com atenção, ainda que tenham contado com contribuições da atriz Giulia Bertoni, do produtor Joaquim Haickel e do diretor Diego Freitas – é combinar de forma harmônica a dinâmica de esquetes (a influencer sem seguidores, a rixa com a irmã abandonada, o padre que sonha dançar como Magal, as sugestões dos mais jovens que aos poucos irão modernizar uma malandragem envelhecida, mas não ultrapassada) com uma linha a ser percorrida, que parte desses anseios que se esvanecem com o tempo e que precisam se adaptar com outros contextos e condições – não melhores, nem mesmo piores, mas apenas diferentes, se estudado com cuidado. Freitas tem ciência de ter em mãos um time do qual pode se orgulhar – além de Cabral e Nercessian, Godoy e Sérgio Malheiros são outros que se destacam em suas participações, assim como Bertoli (filha da protagonista na vida real), que alterna diferentes personalidades sem muito esforço, revelando versatilidade e segurança em sua performance.

Alternando referências que vão de Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) a Ghost: Do Outro Lado da Vida (1990), um projeto como Tire 5 Cartas deveria ser saudado com entusiasmo por qualquer mercado que se ambicione autossustentável e proeminente, pois funciona tanto como exemplo de entretenimento de qualidade, arriscando apenas na medida certa para não gerar ruído (a mudança de eixo para São Luiz e suas cores e referências, o fato dos personagens serem em sua maioria responsáveis por atos condenáveis, mas ainda assim humanos em seus erros e, por isso mesmo, de fácil identificação), ao mesmo tempo em que se ocupa de trilhar caminhos seguros, como o uso de uma trilha sonora contagiante (se há um pecado, é o pouco uso de Alcione e de Sidney Magal, tanto em cena, em suas participações especiais, como no emprego de suas canções) e uma montagem que alterna idas e vindas, explicações passadas e desencontros presentes, possibilidades futuras e alternativas que tanto podem ser reais como meras fantasias. Uma obra sem medo de arriscar no que lhe compete, assim como satisfeita dos acertos que acumula. Parece simples, mas são os méritos discretos aqueles que devem resistir ao crivo mais exigente.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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