Crítica
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Sinopse
Quando criança, Alexia sofreu um grave acidente que levou à implementação de uma placa de titânio em sua cabeça. Muitos anos depois, ela trabalha em pequenos emprego como dançarina, até seu caminho se cruzar com o de um chefe de bombeiros que procura até hoje pelo filho desaparecido aos nove anos de idade.
Crítica
É curiosa a sensação de se encontrar diante de algo novo, ou pelo menos fora dos padrões. As reações tendem aos extremos, entre amores e ódios, enquanto críticos e espectadores ficam sem palavras para descrever o que viram. O estranho Titane (2021) tem sido comparado na imprensa brasileira e estrangeira à violência divertida de Tarantino, aos corpos monstruosos de David Cronenberg, à perversidade amoral de Gaspar Noé, à fobia do desconhecido em John Carpenter - não por acaso, todos homens consagrados que sempre serviram de padrão à cinefilia. Trata-se de um procedimento semelhante a observar pinturas abstratas e tentar identificar formas conhecidas - aquilo ali no canto seria uma mulher ou um cachorro? Ora, a falta de um vocabulário que dê conta de analisar este longa-metragem pode constituir a sua preciosidade: a perturbação dos sentidos através da ruptura com o conhecido. De fato, a maioria das reflexões oferecidas a partir do trabalho da diretora Julia Ducournau diz respeito à dificuldade em determinar exatamente o que se passa na narrativa, e a reticência em determinar o grau de apreciação. “Não sei se gostei ou não, mas mexeu comigo”, afirmaram vozes especializadas. Quer elogio maior a um criador do que este?
Observando pelo prisma clássico-narrativo, seriam evidentes as falhas a apontar: a transformação repentina da personagem principal, a aparente ingenuidade de alguns homens encontrados no percurso, o fetiche das máquinas e a exploração (vitimista? perversa?) dos corpos, a interrupção repentina de circuitos de desejo. O roteiro exige certo esforço do espectador para crer na história da garotinha Alexia, que cresce com uma placa de titânio na cabeça após um acidente na infância, desenvolvendo uma relação erótica com os carros. O mundo ao redor soa acessório: crimes são cometidos em estacionamentos abandonados e sem testemunhas; homicídios ocorrem dentro de casas onde a polícia jamais chega; mutações físicas ocorrem em questão de minutos, no banheiro de um aeroporto, e a barriga de uma mulher grávida se passa por aquela de um rapaz adolescente. É exagerado, é grotesco, é trash, poderiam dizer. No entanto, o filme abraça estes elementos com gosto e consciência. Isso não equivale a “desculpá-lo por suas falhas”, apenas compreender que traduzem um sistema coeso e voluntário, ao invés da incompetência em obter efeito diferente. A cineasta nunca tenta ser sutil ou ambígua: as mortes são reveladas em planos próximos, um mamilo arrancado se descobre em plano de detalhe.
A escolha por sensações epidérmicas e explícitas deve ser separada, portanto, de um julgamento de valores: a estética deixa de ser positiva ou negativa em si. Resta avaliar que, dentro deste registro extremo, Ducournau possui pleno controle de suas capacidades e das sensações que busca despertar no espectador. A chegada de Alexia ao salão de automóveis, num longuíssimo plano-sequência de rebuscada coreografia de câmera, reproduz a sensação de vertigem, enquanto uma festa de bombeiros transbordando de testosterona representa o impacto de uma reunião animalesca. Duas cenas aflitivas envolvendo os seios de Justine (Garance Marillier) transmitem a proximidade entre afeto e violência, indissociáveis na vida da protagonista. A cineasta propõe frequentes e complexas inversões de tom no interior das cenas, dentro de um único plano: o beijo com a colega de trabalho se converte em agressão, a dança amigável com Vincent (Vincent Lindon) se transforma em luta, a integração viril no grupo de bombeiros se desloca pela revelação perigosa da feminilidade. O crime exemplar no estacionamento passa da ameaça física ao investimento erótico e, finalmente, ao prazer da morte. A jovem faz sexo e mata com idêntica carga libidinal.
Atenção: possíveis spoilers a seguir.
Assim, Titane passa a confrontar a masculinidade e a feminilidade às suas fronteiras. Faz sentido que o mundo dos homens seja restrito a bombeiros musculosos e fortes; e que aquele das mulheres se encontre nas dançarinas eróticas. Ora, os machos veem sua estrutura corrompida por um estranho elemento delicado e sedutor, embora dotado de aparência masculina, enquanto o círculo das mulheres se rompe pela força e a rigidez das máquinas. Nesta narrativa, todos os corpos se metamorfoseiam: crianças adquirem placas de titânio; o homem envelhecido transmite aparência de vigor pelos anabolizantes e a constituição de uma mulher de 32 anos será travestida naquela de um rapaz de 19 anos e, metaforicamente, na imagem de um menino de 9 anos de idade. A travessia mais ousada deste filme se encontra na sugestão de que uma jovem sedutora, grávida e parcialmente monstruosa pode se confundir, na cabeça de um pai traumatizado, com um menino pequeno necessitando de afeto e proteção. O cuidador postiço lava as roupas do filho, exibe-o com orgulho aos colegas, ensina-o a fazer a barba para estimular o crescimento dos pêlos. Por isso, o amor paterno se aproxima do controle obsessivo e da prisão em cativeiro, além da possível aproximação erótica entre Vincent e Alexia, ou mesmo a competição entre diferentes formas de virilidade. Ama-se, odeia-se, protege-se e deseja-se sem distinção. Os tabus do incesto, da homossexualidade, da transexualidade, do aborto, do feminicídio e do infanticídio se fundem numa carga só.
Felizmente, o projeto possui a capacidade de, a partir do espetáculo de sensações e martírios, oferecer uma comovente história de amor e amizade. Talvez diretores imaturos se contentassem com a subversão pela subversão, enquanto finalidade em si própria. Ora, Ducournau embute na jornada de forte impacto uma trama linear a respeito da reconstituição da família partida. Os dois protagonistas tornam-se pai e filho, pai e filha, colegas de trabalho, invasor e invadido, sequestrador e refém, marido e mulher. É difícil colocar rótulos nesta relação que vai do melodrama puro (um pai buscando o garotinho desaparecido) à forma híbrida de relacionamentos. "Não sei quem é você nem como se meteu nessa, mas cuide bem dele”, afirma uma voz da prudência a Alexia, em referência a Vincent. O horror e a fantasia se traduzem nas ferramentas mais adequadas à proposta pela capacidade de representarem rupturas. O filme nos confronta à incapacidade em delimitar gêneros, sexualidades e afetos, embora estejam claramente presentes e sejam fundamentais aos personagens. Por isso, a Palma de Ouro em Cannes constituiu um belo gesto de afronta ao sistema, em defesa de um cinema jovem, repleto de vigor e capacidade de ressignificação do que se conhece por “filme de festival”.
A este propósito, na edição deste ano, para o bem e para o mal, Wes Anderson apresentou algo próximo do que vinha fazendo antes, Apichatpong Weerasethakul trouxe a forma de cinema metafísico que lhe é peculiar, Asghar Farhadi comprovou a habitual destreza de roteiro. No entanto, Ducournau revelou uma proposta diferente, que nos deixa sem palavras e possivelmente causará adesão e repulsa em igual medida. Cabe aos festivais apontar os rumos futuros da produção contemporânea, novas formas de autoria e articulação estética. Terra do compadrio entre grandes autores consagrados, Cannes enfim cumpre este papel no caso específico de Titane. Seria exagerado falar em uma obra perfeita (termo inexistente na arte), revolucionária (e precisaria sê-lo?) ou completamente inovador (nada parte da ausência total de referências). Nenhum destes critérios é empregado na avaliação de cineastas homens premiados, e tampouco deveria se destinar à diretora francesa. Resta perceber a capacidade de Ducournau em traduzir a configuração contemporânea de gêneros e sexualidades dentro de uma fábula intensa, que parte de assassinatos para se encerrar no amor - uma forma de cinema onde o horror significa afeto, onde sagrado e profano convivem lado a lado.
Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 8 |
Marcelo Müller | 8 |
MÉDIA | 8 |
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