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Sinopse

Seis indivíduos com transtorno obsessivo-compulsivo estão reunidos na sala de espera de um psiquiatra, a fim de resolver seus problemas. O psiquiatra nunca vai à terapia e serão eles que terão de chegar às suas próprias conclusões.

Crítica

A estrutura deste filme se apoia ostensivamente nos recursos de teatro – mais especificamente, no teatro de boulevard, popularesco e acessível, cujos personagens funcionam enquanto estereótipos assumidos de certos tipos sociais. A ação se desenvolve num único espaço, no caso, a sala de espera de um psicoterapeuta especializado em tratar pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo. Os principais elementos da cena teatral e do huis clos estão presentes: primeiro, todos os personagens se encontram juntos, o tempo inteiro, provocando-se dentro de uma narrativa movida pelos diálogos. Segundo, o cenário se limita precisamente a esta função: ele se reduz a um pano de fundo, com os quais os personagens interagem muito pouco. A câmera nada mais faz do que seguir o rosto de cada paciente quando chega sua vez de falar. Terceiro, por mais que briguem e possuam motivos de sobra para abandonar aquele espaço – o terapeuta não chega nunca, os demais pacientes são pouco amigáveis – eles permanecem dentro da sala de espera.

Isso ocorre devido a uma dificuldade básica deste tipo de dispositivo: no caso, trabalhar o mundo fora de cena (para o teatro) ou o espaço fora do enquadramento (para o cinema). Sabemos muito pouco sobre estas pessoas para além do consultório – seus desejos, sua família, suas opiniões sobre acontecimentos contemporâneos -, porque não existe mundo fora da cena. Os personagens não fogem porque não haveria para onde ir. Por que o casal irritado de Deus da Carnificina (2011) não deixava o apartamento após tantas brigas? Por que os convidados de Qual É o Nome do Bebê? (2012) não abandonam a festa desinteressante? Por que os colegas de A Festa (2017) continuam a participar do jogo de ofensas e ironias? Uma artificialidade inerente a estas comédias teatrais-cinematográficas consiste na impossibilidade de conceber um espaço outro, em relação a este, com o qual os personagens se comunicariam. Uma vez atravessadas as portas destas salas – sempre uma sala de estar, espaço de “convivência” por excelência – a brincadeira termina, e não há motivos para continuar a investigação sobre estas personalidades.

Assim, os personagens só interessam ao filme enquanto puderem provocar uns aos outros. Por isso, são definidos por seu potencial de conflito. Em Toc Toc (2017), existe um homem com Síndrome de Tourette (Oscar Martínez), que diz obscenidades sem se controlar, diante de uma mulher bastante religiosa (Rossy de Palma); há um homem carente que não consegue pisar em linhas no chão (Adrián Lastra) diante de uma jovem igualmente carente, que repete todas as suas frases (Nuria Herrero); um tipo acumulador e desengonçado (Paco León) diante de uma mulher com obsessão por limpeza e medo de germes (Alejandra Jiménez). Os conflitos entre eles se desenrolam dentro das oposições esperadas: os xingamentos, as mãos sujas, as repetições e os medos de listras dominam cada diálogo. Talvez o prazer oferecido ao espectador, neste caso, se encontre no conforto da previsibilidade. Cria-se um cinema do escapismo povoado por pessoas que não parecem reais, num cenário abertamente falso, em relações efêmeras. Espera-se que a risada provenha não da nossa identificação com os problemas universais deles mas, pelo contrário, da raridade ou excentricidade destas figuras. Rimos porque são diferentes de nós.

Toc Toc propõe a curiosa sensação de rir da diferença, de seres um tanto patéticos, cujas síndromes talvez nem conhecêssemos antes. “Então a minha condição tem um nome?”, pergunta uma personagem, surpresa. O humor desta produção pode ser considerado preconceituoso pelo fato de não rir com os personagens, e sim dos personagens. Pessoas dotadas de transtorno obsessivo-compulsivo poderiam viver diversas situações hilárias não baseadas em suas manias e fobias, no entanto, sua fraqueza se torna exatamente o ponto de onde o diretor Vicente Villanueva, baseado na peça de Laurent Baffie, deposita seu humor. Como seria a vida de uma pessoa com TOC com um filho, ou no mercado de trabalho? A partir de situações verossímeis, poderia surgir um resultado mais orgânico. Estas piadas soam socialmente aceitáveis por criticarem um grupo de pouca visibilidade, mas que diferença haveria entre rir destes pacientes maníacos por suas manias ou rir de gordos por serem gordos, de gays por serem gays, de negros por serem negros? A oferta de humor se encontra na fragilidade de cada um, no aspecto que faz dele uma figura diferente. O olhar se posiciona à distância: oferece-se ao espectador inserido socialmente a possibilidade de se divertir com alguém à margem.

Quanto à narrativa, ela se baseia no princípio da gradação: os seis protagonistas confrontam suas fobias até o limite da explosão – tanto de seus limites enquanto seres civilizados quanto das fronteiras do cenário. A saída, como se poderia esperar, consiste em subverter as obsessões individuais e passar literalmente pela porta, ou seja, abandonar o lugar onde estavam confinados. Existe um caráter de circo, ou mesmo de reality show, nesta configuração: reúne-se tipos que dificilmente conviveriam juntos pelo prazer de verem se digladiarem, para nossos olhares cômodos. As piadas sobre genitálias, frases repetidas, mulheres religiosas e pacientes lavando as mãos dezenas de vezes se repetem a gosto. Na verdade, as gags não existem a partir dos personagens, e sim o oposto: as figuras humanas servem para dar corpo a piadas preconcebidas. Por mais talentoso que seja o elenco espanhol, ele tem pouco a fazer além de encarnar, literalmente, os tiques do roteiro. Os atores parecem se divertir, pelo menos, e talvez o público também se distraia, sem perceber que o motor desta comicidade consiste no esvaziamento das personalidades e dos contextos sociais. Rimos da tolice alheia – e, quem sabe, da nossa também.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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