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Sinopse

Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal acompanha décadas da vida de uma mulher no Mississippi, EUA. O crescimento, os amores e as tristezas de Mackenzie, da infância à idade adulta. Um olhar sobre a realidade da mulher negra e sua rede de afetos. Selecionado para o Festival do Rio 2024.

Crítica

Pensando mercadologicamente, no cinema é muito mais indicado seguir fórmulas previamente testadas e aceitas do que tentar algo diferente. Afinal de contas, o público parece cada vez mais acomodado, evitando propostas estéticas e narrativas que exijam algum esforço. Claro, isso é uma generalização, então não deve ser tomado como verdade. Mas, há uma predisposição pelas experiências confortáveis, mesmo que o preço a ser pago seja uma enxurrada de filmes semelhantes em tudo, quando muito com leves variações. Então, é no mínimo consolador se deparar com algo do tipo de Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal, longa-metragem que arrisca e nos chama para uma experiência muito mais aberta do que estamos acostumados a ver. A protagonista é Mack, interpretada na infância por Kaylee Nicole Johnson, na vida adulta por Charleen McClure e na maturidade por Zainab Jah. O que essa produção nos propõe é um mergulho sensorial ao longo da vida dessa mulher nascida no Mississippi, nos Estados Unidos. Costurando com habilidade retalhos aparentemente aleatórios de toda uma vida, a cineasta de primeira viagem Raven Jackson desenha uma trajetória repleta de lacunas, que nega o didatismo dos diálogos expositivos e dos simbolismos fáceis, confiando no espectador para juntar as partes. Felizmente, as qualidades do filme extrapolam essa coragem de fazer algo divergente do padrão.

Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal é feito de flagrantes de momentos corriqueiros da vida de Mack, mas que se transformam em epifanias por meio da mise-en-scène proposta pela poeta e fotógrafa renomada Raven Jackson. Assim, um simples meneio das mãos da protagonista adquire um caráter sublime, haja vista a maneira lírica como o registro desse instante é feito – numa bela conjugação de imagens e sons. A hesitação da menina diante do ensinamento da mãe sobre como eviscerar um peixe se choca simbolicamente como a cena anterior, a na qual a menina é vista literalmente tateando a água e o lodo formado no fundo do lago, dando um pouco de sobrevida ao animal capturado para virar refeição. Também autora do roteiro, Raven tece uma teia de acontecimentos de temporalidades diferentes, construindo cinematograficamente o poema do cotidiano de Mack. Com um rigor formal impressionante para marinheiros de primeira viagem, ela não teme a parcialidade dos planos, pelo contrário, pois evita as tomadas abertas de contexto. Então, em muitas passagens do filme ficamos segundos a fio contemplando uma caminhada focada nos pés e nas meias coloridas das crianças, assim como é demorado o vislumbre da paixonite da protagonista andando de costas na companhia de amigos de sua idade. Amores, tristezas, perdas inestimáveis, situações inesquecíveis, tudo cabe nesse quadro.

O rigor formal proposto por Raven Jackson cobra um preço. A manutenção de uma postura rígida causa uma dinâmica visual tão bonita quanto potencialmente asfixiante. Mas, mil vezes sentir o baque ocasionado por planos demorados que tentam deixar um pouco da mesmice para trás do que contemplar pela enésima vez clichês visuais cuja tarefa é entorpecer os sentidos e nos alienar.  Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal é muito inteligente como quebra-cabeça afetuoso cuja imagem final é formada de diversos episódios simples, mas tornados sublimes pelo cinema. Há uma referência visual explícita ao cinema de Terrence Malick, mais especialmente ao controverso A Árvore da Vida (2001). No entanto, diferentemente do veterano inspirador que utiliza imagens estilizadas para tentar alcançar algum sentido religioso na observação da família, Raven não parece à procura do celestial escondido na rotina da menina/mulher. Por fim, se há um elemento muito poderoso no filme é o seu desenho de som. A quase completa ausência de silêncio durante o enredo se deve à exímia construção sonora que denuncia a falta de vocação da natureza pela inercia. Mesmo em cenas calmas, os sons das cigarras, das folhas balançando, dos pássaros canoros, enfim, do entorno sinfônico se encarrega de não nos deixar esquecer que Mack amadurece num meio ambiente absolutamente vivo. Para isso o som adiciona camadas.

Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal é um filme provocador que solicita do espectador uma generosidade à qual ele não está tão acostumado ultimamente. Por certo não funcionará plenamente se a plateia for do tipo indócil que, diante de qualquer momento contemplativo, tem a tendência de pegar o celular para dar uma conferida nas novidades em busca de estímulos. É preciso se entregar ao fluxo de imagens e sons que vão edificando esse resumo poético da vida de uma mulher identificada pelas tranças com fitas coloridas presas nas pontas. Para além do conjunto estético, Raven Jackson dá outros indícios de que pretende contar a história o mais longe possível dos lugares-comuns e das fórmulas “mágicas” de Hollywood. E ainda mais instigante do que as bonitas imagens e o expressivo som é o resultado do entrelaçamento de ocasiões em cronologias diferentes. Por exemplo, numa cena a protagonista está descobrindo o milagre da vida e depois, na imediatamente subsequente, é obrigada a dialogar com a morte. Por vezes o filme parece derrapar nesse terreno arenoso no qual nasceu e foi criado, sobretudo quando os acontecimentos começam a repetir coisas anteriormente abordadas. De toda forma, Raven Jackson mostra credenciais suficientes para acompanharmos a sua recém-inaugurada carreira como diretora de longas. A força de sua dramaturgia a habilita a ser seguida de perto.

Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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