Crítica
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Sinopse
Adam tem um encontro casual com seu Harry, seu vizinho misterioso. À medida que eles se aproximam, Adam começa a se sentir perturbado com fatos do passado e impelido a voltar à sua casa da infância num subúrbio inglês.
Crítica
Não há indivíduo que não seja, em um grau ou outro, estranho mesmo àquele que há muito está ao seu lado. Familiares, amigos, colegas ou vizinhos, podem até se considerar íntimos, próximos, donos de liberdades para com os demais. Mas, no fundo, estão todos sozinhos, guardando com força suas particularidades e temores, traumas e pequenas vitórias, por muitos não compreendidos, mas sempre passíveis de identificação. Em Todos Nós Desconhecidos, a dor de um se espalha por demais, permitindo magoar mesmo quando não há intenção, e buscando no passado a superação que possibilitará que um amanhã – qualquer um, longe de ser perfeito, certamente não ideal, mas, ainda assim, diferente do ontem – seja viável. Eis, portanto, o esforço de um em resgatar laços do passado, ao mesmo tempo em que exercita as relações num agora passageiro, visando um dia adiante no qual essa dedicação não se faça mais necessária – pelo contrário, lhe surja de modo natural. As bagagens que cada pessoa carrega consigo podem ser independentes de origem ou contextos sociais, e, sim, partes daquilo do qual se formam. E assim, se libertar destas amarras ou usá-las a seu favor nessa luta diária é mais do que uma questão de escolha: trata-se de uma forma de sobrevivência.
Adam (Andrew Scott, o “padre gostoso” de Fleabag, 2019, em uma performance complexa em sua simplicidade, pelo tanto que mantém pouco abaixo da superfície, a todo instante ameaçando uma erupção quase sempre contida com esforço, tanto pelo personagem, quanto pelo ator) é um dos primeiros moradores de um edifício recém inaugurado. Pelo que parece, é alguém que “que deu certo na vida”: tem um trabalho dos sonhos, mora em um apartamento novo, em um dos centros mais disputados do mundo. Porém, é quando fecha a porta e o mundo exterior fica do lado de fora que seu drama parece ganhar força. Eis um solitário, que se ressente de ter sido abandonado por aqueles que maior apreço guardava – ainda que esse adeus tenha sido involuntário ou não, o certo é que foi o único a seguir adiante. Nesse momento de isolamento, eis que sua campainha toca, e quem o chama é um morador que há pouco ali também se instalou. A conexão entre eles é imediata. Mas há muito a se considerar. Não estão os dois na beira da praia, correndo um em direção ao outro, como um casal que anseia por um beijo. Pelo contrário, se encontram em uma cidade grande, repleta de perigos e advertências. Um estranho, por mais que seja conhecido de vista, levanta certos alertas. E a tentativa de aproximação acaba sendo frustrada. Um desfecho que levará ambos a caminhos incontornáveis.
É neste ponto que o desamparo sentido por Adam ganha contornos mais sombrios. Pois o conforto que há muito ele necessita, e que havia lhe sido ofertado, ainda que de um modo um tanto explícito e até mesmo desajeitado na noite anterior, pelo morador que tanto deseja quanto lhe intimida, acaba encontrando nos próprios pais. Essa inesperada reunião familiar se mostra perturbadora, mesmo que há muito desejada, quando fica claro ao espectador que ambos estão mortos. O Pai (Jamie Bell, injetando uma bruta sensibilidade que faz ecos ao seu desempenho de estreia, o sempre lembrado Billy Elliot, 2000) e a Mãe (Claire Foy, permeando sua composição com uma resiliência implícita em sua condição, ainda que pouco resignada) se mostram tão surpresos quanto ele por estarem mais uma vez juntos, e tratam de aproveitar ao máximo cada instante que lhes é concedido. Não há reviravolta feita sob encomenda para pegar a audiência despreparada: pelo contrário, está justamente no inusitado desta união o poder que dos três emana. Entre eles há muito a ser descoberto e assumido. Pontas a serem aparadas, acertos de contas que ficaram pendentes. E nessa oportunidade rara que lhes é ofertada, é aquele que ainda tem muito pela frente que precisa entender como aproveitá-la: não apenas para si, mas também para aqueles que do convívio dele tirarem algum proveito.
É compreensível que alguns acusem Todos Nós Desconhecidos de ser focado por demais nos problemas de um homem branco de classe média. Ou seja, em muitos pontos o que se verifica é o drama de alguém privilegiado, e que diante das demais agruras do mundo, bem que este poderia aprender a lidar com seus fantasmas sozinho, sem importunar os demais, principalmente os que possuem questões reais a serem superadas. No entanto, esse tipo de leitura fala tanto do texto ficcional em debate quanto da visão estreita dos que reduzem o que aqui é exposto a apenas esse tipo de análise, limitando seu alcance a um discurso genérico, e não particular como o que aqui se identifica. Adam é único em suas dores, assim como cada um do lado de cá da tela percebe o peso que carrega como diferente – nem maior, muito menos menor, apenas distinto – e, por isso, urgente em seu trato. A presença de Harry (Paul Mescal, em participação contagiante, seja pela leveza que agrega ao conjunto, como pela energia que empresta ao protagonista) vai crescendo de forma gradual, do encontro fortuito à companhia onipresente, indo além da mera condição de muleta aos traumas de um para uma postura de troca e entendimento, algo que termina por fazer diferença mesmo quanto não se é mais possível voltar atrás.
Dessa forma, o relato que aqui se presencia é mais do que um episódio isolado. Adam e as figuras que transitam ao seu redor trazem um convite à reflexão, independente da condição sexual, faixa etária ou estrato social. Andrew Haigh, cineasta recorrente na temática queer, como títulos como Weekend (2011) e a série Looking (2014-2015) atestam, retorna a esse universo naquele que afirma ser o seu filme mais pessoal. Impressiona, porém, o quão amplo ele consegue dotar os elementos resgatados em sua proposta, fazendo do conjunto não apenas um desabafo consigo, mas também a qualquer um com sensibilidade suficiente para enfrentar de peito aberto os tropeços que vão se acumulando pelo caminho, assim como os atalhos que aos poucos serão apresentados. Todos Nós Desconhecidos machuca pela honestidade com que enfrenta suas escolhas, da mesma forma que gratifica pelo exemplo contido em cada pequeno gesto ou detalhe, tanto de aproximação, como, de uma forma ou de outra, de afastamento. São idas e vindas que fazem parte do jogo, por mais doloridas que possam ser em um momento ou outro. Nada, portanto, como o dia seguinte. Pois é de um recomeço que o homem precisa.
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