Crítica

Marilyn Monroe virou um dos maiores ícones do cinema mundial interpretando sempre um mesmo tipo, com algumas variáveis: a loira irresistível e um tanto tola que deixava qualquer um ao seu redor embasbacado. Mas o que poucos sabem é que ela era uma atriz dedicada, que pesquisava pelos melhores papéis, que durante muito tempo amargou pequenos papéis coadjuvantes até conseguir se destacar no elenco principal e que sempre se esforçava para conseguir fugir dos padrões pré-estabelecidos pelos grandes estúdios. E Torrentes de Paixão talvez represente um dos seus maiores desafios, pois aqui ela não só faz uma das suas primeiras protagonistas, como também estreia como vilã, ousando numa personagem com motivos secretos, duplas intenções, dissimulada e, acima de tudo, muito perigosa.

O trailer do filme aponta logo de início: “As cataratas do Niágara e Marilyn Monroe, duas forças da natureza que ninguém pode ir contra”! Pois esses são os ganchos principais de uma trama de suspense que mantém a tensão até o último instante. Marilyn é casada com um homem mais velho (Joseph Cotten, de Cidadão Kane, 1941) que passa as férias à beira das cataratas, no lado canadense. Quando os encontramos vemos que estão em plena crise: o marido dorme, pela manhã, após passar a noite em claro fora da cabana que alugam. O quarto estava reservado para um outro casal – Jean Peters, de Viva Zapata! (1952), e Casey Adams, que apareceu novamente ao lado de Marilyn em Nunca Fui Santa (1956). Eles entendem a aceitam outra reserva, mas acabam se aproximado daquela dupla diferenciada: a mulher parece dedicada, mas ao mesmo tempo cansada dos rompantes de ciúmes do marido, que está literalmente à beira de um colapso nervoso.

Torrentes da Paixão começa a mudar de rumo quando a recém chegada, em um dos seus passeios pelas cataratas, encontra a bela vizinha nos braços de um rapaz muito mais jovem. Ela não se deixa ser vista, mas entende – assim como o público – que as coisas não são realmente o que parecem ser com aqueles dois. A mulher infiel e o amante tramam um plano para assinar o esposo dela, mas as coisas não saem exatamente como o imaginado, e somente a outra mulher poderá elucidar o que de fato teria acontecido. O final da personagem de Marilyn Monroe é trágico, e isso faz deste filme mais especial: foi o único caso em toda a carreira da atriz. Quem pensava que este ícone sempre buscava as saídas mais fáceis, os personagens mais descomplicados e a sedução leve e sem grandes compromissos, este trabalho aponta para justamente o contrário.

Henry Hathaway foi indicado ao Oscar como Melhor Diretor por As Vidas de Bengal Lancer (1935), mas somente muitos anos depois entregaria um filme realmente clássico: Bravura Indômita (a primeira versão, de 1969), que renderia o único Oscar para John Wayne. Em Torrentes da Paixão ele tem um desempenho bastante competente, que equilibra com sabedoria os momentos de tensão com aqueles mais leves, indo de encontro – principalmente na primeira metade da trama – com o que os fãs de Marilyn esperavam encontrar. A escolha inicial para a jovem noiva que encontra a esposa traidora era Anne Baxter (A Malvada, 1950), que ao desistir do papel abriu espaço no roteiro para que a outra personagem feminina tivesse mais tempo em cena. Assim, quase que inadvertidamente, o acaso contribuiu mais uma vez para a construção de um mito, deixando claro que ela era capaz de muito mais do que o público – ou os chefes dos estúdios – insistiam em vislumbrar.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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