Crítica
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Sinopse
Telmo foi professor de teatro. Ele carrega as marcas de ter sido reprimido pela ditadura militar. Telmo chegou a ficar seis meses preso. Para se reconectar com esse passado doloroso, decide sair da aposentadoria e montar uma peça.
Crítica
No começo, há os bastidores de um documentário. Determinado membro da equipe técnica coloca um microfone em Carlos Alberto Riccelli. Sendo o ator chamado de Telmo, entendemos que tudo aquilo não passa de outra camada da encenação proposta pela diretora Tata Amaral, além de pretexto para construir uma ponte sólida entre as dimensões ficcionais e documentais de Trago Comigo, filme baseado na série homônima que foi ao ar na TV Cultura. O ex-diretor de teatro fala aos solavancos sobre o período em que fez parte de uma célula revolucionária armada contra a ditadura militar. No seu rosto, a dor que as lembranças trazem, o sofrimento de rememorar os tempos de clandestinidade e a posterior tortura. Somado a isso, a perda de um grande amor que militava junto dele, pichando muros e pegando em armas para reivindicar a volta da democracia, algo que os milicos rechaçavam. Afastado das atividades artísticas, namorando uma garota mais jovem, ele se vê confrontado pelo passado.
Há algo de muito forte na trama de Trago Comigo, que magnetiza nossa atenção, suplantando a fragilidade de alguns elementos, como a, por vezes, pobre direção de arte, vide os jornais, tanto os de época quanto os atuais, que não escondem seu caráter puramente cênico, falso. Convencido a dirigir novamente uma peça, Telmo se depara com um lance fortuito em meio aos testes de elenco, algo que toca diretamente num dado capital da sua vida privada de antes. A velha ferida, cicatrizada há muito tempo, volta a sangrar, pois reaberta. Essa cena, em que os atores usam os codinomes dele e da amada já morta, é desengonçada, um instante de descoberta encaixando meio a fórceps para servir de gatilho à inspiração e ao porvir. Felizmente, a despeito da falta de jeito, funciona porque a ideia é muito boa. Telmo usa a sensação conflitante como força de criação, talvez para expurgar seus demônios ao vê-los representados, exteriorizados no palco. Contar a própria história, vertendo-a em teatro, é confiar plenamente no poder transformador da arte.
Trago Comigo cambaleia bastante até que o protagonista comece seu trabalho na peça autobiográfica, contudo sem nunca deixar de nos oferecer algo para seguirmos conectados emocionalmente aos personagens e àquilo que eles representam. A trama ficcional é entrecortada por depoimentos verdadeiros de gente que apanhou nos porões da ditadura. Esse acréscimo documental enriquece a ficção, pois traz certa dose de autenticidade tanto à dor de Telmo quanto ao espetáculo que ele leva a cabo. À medida que os ensaios avançam, surge um choque geracional interessante entre o diretor que viveu aquela época de repressão e os atores que não entendem, por exemplo, como pode ser considerado certo alguém que assalta bancos ou protesta armado. Nesse ponto, Telmo deixa de usar a arte como catarse, passando a explorar seu potencial para reconstruir o que ele relegou deliberadamente ao inacessível da memória por inabilidade de lidar abertamente com os traumas.
Esse mistério que faz Trago Comigo sobrepujar os problemas é boa parte explicado pela interpretação valorosa de Carlos Alberto Riccelli e a inteligência da diretora Tata Amaral ao amalgamar documentário e ficção, estabelecendo uma simbiose. Apoiada nos dizeres de gente que realmente pagou caro pela ideologia contrária ao regime dos anos de chumbo, a trajetória de Telmo e de seus atores se torna parte do painel da nossa redemocratização, que serve para vislumbrarmos o passado sem eufemismos e meias verdades. Confrontar um possível traidor, peitar o ator que não entende os anos 1960, exumar-se à procura de algo que não sofrimento, são expedientes que Telmo lança mão, menos para voltar triunfante aos holofotes, e mais como maneira de resgatar o que lhe foi tirado.
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