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Sinopse

Brooke é uma galerista de destaque em Nova Iorque. Quando ela começa a divulgar o trabalho de um homem sedutor, conhecido pelas pinturas eróticas, o marido dela, Owen, fica com ciúmes. No dia em que é abordado por uma bela mulher num bar, ele não pensa duas vezes antes de aceitar o flerte. O casamento perfeito começa a ruir a partir deste momento.

Crítica

Apesar de chegar aos serviços de streaming no mês de janeiro, Traição e Desejo (2021) pode ser compreendido enquanto tentativa de realizar um filme adulto de Natal. Às vésperas do feriado, o casal formado por Brooke (Victoria Justice) e Owen (Matthew Daddario) sonha em ter um bebê, embora o stress cotidiano tenha dificultado a concretização dos planos. Ela é linda, repleta de amigos e bem-sucedida no mundo das artes, pois acaba de descobrir um pintor de grande potencial. Ele é lindo, repleto de amigos e bem-sucedido no mundo do jornalismo, tendo a oportunidade de desvendar um caso importante. Partindo deste cenário de perfeição branca e burguesa, o roteiro introduz um obstáculo no caminho de cada um, para vê-los tropeçar: ela começa a se aproximar do pintor Ansgar (Lucien Laviscount), um sujeito sedutor cujos quadros revelam a nudez das mulheres com quem fez sexo. Já ele tem uma estagiária atraente e uma colega de trabalho insinuante, além de conhecer uma loira insistente num bar. Pobres sujeitos perfeitos e castos, vítimas das artimanhas das grandes cidades. Ela começa a pensar que está sendo traída; ele também. Existe um fator perverso na decisão de se amparar do “casal perfeito” apenas para plantar sementes de discórdia e observar, cena a cena, a felicidade desmoronar.

A disposição deste tabuleiro de cobiças é simplíssima. O mundo gira em torno da dupla de protagonistas: ninguém ao redor terá qualquer conflito próprio ou traço específico de identidade — eles servem apenas para dar a réplica aos dois. Da primeira à última cena, Brooke pensa em sua galeria e na relação com o único cliente. Já ele chega e sai das gravações na emissora, diretamente para casa. Ninguém possui família, sonhos para o futuro, traumas no passado, crenças políticas, ideologias, gostos, vícios, preferências. Estas figuras se reduzem à mínima caracterização possível: um traço de personalidade e pronto. Se este é o caso dos heróis, que ocupam a quase integralidade das cenas, imagine a miséria cênica em que se encontram os coadjuvantes. Ansgar é reduzido à caricatura tragicômica do negro predator, hipersexualizado, irresistível a qualquer mulher, enquanto Amy (Katherine McNamara) se limita à loira pragmática e sem escrúpulos. O universo ao redor soa tão nocivo que, apesar dos deslizes fora do matrimônio, Brooke e Owen ainda representam dois anjos diante do cinismo generalizado. Adam (Ronny Chieng) e Eleanor (Lindsay Broad), melhores amigos dos protagonistas, reforçam a paranoia dos casos extraconjugais e toleram as mentiras alheias. Os roteiristas Kristen Lazarian, K.S. Bruce e Brian DeCubellis preparam um indigesto coquetel de subjetividades egocêntricas.

Na direção, DeCubellis reforça a impressão de um filme B, do tipo que, trinta anos atrás, se encontraria nas prateleiras empoeiradas das videolocadoras. O cineasta entope a imagem de trilha sonora redundante: ora aposta no jazz vaporoso para as sequências sensuais, ora investe em temas religiosos para a dor dos traídos, e depois escolhe um indie pop acelerado quando a situação melhora para a galerista e o jornalista. As melodias apontam quando ficar feliz, triste ou temeroso, como se o espectador tivesse dificuldade de perceber estas interações sozinho. A montagem oculta informações óbvias (a respeito das infidelidades, claro), para então voltar no tempo, em colagens aceleradas com intervenções canhestras de pós-produção, e revelar a verdade. As cenas no apartamento são mal iluminadas, e assim que chega à rua, a direção de fotografia reduz a profundidade de campo a tal ponto que os borrões ao redor de Owen e Brooke poderiam corresponder ao tapume de um estúdio cenográfico. Para um filme obcecado por sexo, há pouquíssima abertura à intimidade, sempre envergonhada: a luz se escurece por completo, enquanto os enquadramentos tentam se focar no que ocorre ao lado enquanto os amantes concluem o ato — tapa-se o olho na torcida para acabarem logo. O filme demonstra fascinação por aquilo que considera, no fundo, sujo e errado. O sexo se converte em fobia, culpa e indecência, ao invés de um momento de prazer e comunhão.

Além disso, a configuração dos afetos beira a paródia. Os criadores se apropriam de um tema obviamente psicológico, mas retiram as nuances psicológicas e privilegiam ações. Suspeita que o marido está traindo? Contrate um detetive, ou uma mulher para seduzi-lo, testando os limites da monogamia dele. Imagina que a mulher esteja saindo com o artista? Retalie a ameaça à sua virilidade saindo com a garota no bar (e talvez a melhor amiga dela junto). “Pessoas como Ansgar são ótimas para os negócios”, explica Eleanor, uma advogada de divórcios. O cinismo impera neste projeto tão complexo quanto as brigas do Teste de Fidelidade, Casos de Família e outros programas espetaculares (e ridiculamente falsos) da televisão aberta vespertina — vide a chegada da esposa ciumenta no set de filmagem, a reação do marido, e todas as cenas envolvendo Amy. O diretor pretende abordar questões estritamente adultas, porém dentro de um universo infantilizado, simplificado, que jamais permite o gozo ou o expurgo. Por isso, as atuações resultam fracas, sobretudo no caso de Lucien Laviscount. Em seu figurino roqueiro-pornô-trash, num misto de Lenny Kravitz e Drake, ele condensa o imaginário fetichista e pobremente detalhado do desejo erótico. No fundo, o autor se debruça sobre o imaginário popular da sexualidade e da monogamia, em detrimento da representação realista das mesmas — por isso, celulares e tablets estão sempre destravados, à disposição dos cônjuges paranoicos, enquanto jornais com informações esclarecedoras pairam convenientemente no sofá alheio. Não há sombra de verossimilhança nesta versão adulta de Pretty Little Liars.

Para piorar o resultado, Traição e Desejo defende o aspecto conservador dos relacionamentos heteronormativos e da família patriarcal. Ao perceber o casamento em risco, Brooke se depara com a imagem angelical de uma mãe brincando com seu bebê no parque. Apesar da ruptura iminente, a solução virá de um bebê abrupto para colocar marido e esposa de volta ao lar, longe das tentações das ruas. O dilema será recalcado, ao invés de confrontado. Além disso, naturaliza-se o abuso sexual, a manipulação emocional e psicológica. O diretor insiste em enxergar nos avanços agressivos de Ansgar uma forma de romantismo (o homem, de tão apaixonado, não se controla, pobrezinho), embora o fato de colocar a mão entre as pernas da galerista, no meio de uma reunião de trabalho, represente evidente violência de gênero. O pintor repete o procedimento com diversas mulheres pelo caminho, sendo considerado “o homem mais sexy do mundo”. A manipulação perversa da esposa com o marido, violando sua privacidade e criando armadilhas, também é ilustrada como gesto de carinho. Neste filme, quem ama, oprime, manipula, abusa, constrange, sendo recompensado positivamente por estas atitudes no final. O discurso reveste a fábula tóxica com uma história de amor, ainda mais anacrônica pós-movimento MeToo. A fábula de Natal se encerra com um gosto inesperadamente amargo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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