Crítica
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Crítica
Já em seu primeiro longa-metragem, a interessante mistura de suspense e comédia de humor-negro Cova Rasa (1994), o cineasta britânico Danny Boyle despertou a curiosidade de crítica e público, colocando-o na lista de nomes a serem observados atentamente. Em seu trabalho seguinte, Boyle causaria um furor ainda maior no mundo cinematográfico com a adaptação de Trainspotting, livro do celebrado e polêmico escritor escocês Irvine Welsh. A história sobre o cotidiano regado a drogas, sexo e música de um grupo de amigos em Edimburgo tornou-se um dos símbolos do cinema independente dos anos 90, além de entrar diretamente para o imaginário da cultura pop mundial.
O personagem principal e narrador da história é Renton (Ewan McGregor), um jovem de classe média baixa que passa seus dias em bares, festas, cometendo pequenos delitos e consumindo heroína ao lado de seus companheiros de vício: o fã número um de Sean Connery e aficionado por James Bond, Sick Boy (Jonny Lee Miller), o atrapalhado Spud (Ewen Bremmer), além do atleta – e aparentemente o mais “normal” do grupo - Tommy (Kevin McKidd) e do sociopata Begbie (Robert Carlyle). A trama acompanha a descendente de Renton no mundo das drogas e sua tentativa de abandoná-lo, bem como seu relacionamento com os círculos familiares, de amizades e amorosos, este último representado pelo caso que mantém com uma estudante colegial, Diane (Kelly Macdonald). A cena de abertura, que mostra a fuga desenfreada dos personagens e apresenta o já clássico o discurso/monólogo “Choose Life”, deixa clara a sua vocação para cult e serve como um resumo de todas as características estilísticas impostas por Boyle, que seriam responsáveis por boa parte do sucesso do filme: a linguagem videoclíptica, com ritmo ágil, edição frenética e visual estilizado. Artifícios que não chegam a ser revolucionários, ou propriamente inovadores, mas que o cineasta consegue utilizar de maneira bastante inventiva e, o mais importante, integrando-os de forma orgânica, para que sirvam com eficiência aos propósitos narrativos do longa.
Com estas ferramentas em mãos, Boyle busca representar as sensações proporcionadas pelo consumo de substâncias entorpecentes, como a adrenalina, o êxtase, a angústia e as alucinações. O diretor é muito bem-sucedido em sua escolha, fazendo com que o espectador divida com os personagens uma experiência intensa e de grande amplitude emocional. Esta escolha permite também a criação de momentos visualmente marcantes, que adentram o terreno do surreal, como o mergulho de Renton na privada do “pior banheiro de toda a Escócia”, ou quando o personagem literalmente se afunda no vício e no tapete da sala de seu fornecedor, interpretado pelo ótimo Peter Mullan. Muitas destas sequências podem ser consideradas desagradáveis, como a do bebê morto de uma das usuárias de heroína ou o incidente intestinal de Spud na casa da namorada, mas Boyle as retrata sem pudor. Com isso o diretor se mantém fiel à sua fonte criativa, a obra de Welsh, inclusive em outros detalhes, como as particularidades da cultura escocesa (as gírias e o forte sotaque local, por exemplo).
Mesmo que a estética possa ser, inicialmente, o principal atrativo do trabalho de Danny Boyle, talvez sua maior qualidade aqui seja tratar de temas controversos sem ser moralista, mas também sem transformar seu discurso em uma exaltação ao uso de drogas. É um equilíbrio difícil de ser alcançado, mas que se faz presente na maior parte do longa. Outro aspecto positivo é a condução do elenco, composto por atores praticamente desconhecidos até então. Todos estão muito bem em seus papéis, conseguindo representar os seres bizarros do universo de Welsh com seus exageros e cinismo na medida certa, especialmente McGregor que se tornaria o nome mais famoso posteriormente. Esta sintonia é fundamental, pois mais do que um filme sobre o mundo das drogas, Trainspotting é um filme sobre amizade. Um tipo de amizade errática, que parece surgir apenas nos momentos de necessidade causados pelo vício, mas que de algum modo exerce grande força sobre os personagens. Personagens que são, sem exceções, figuras amorais e autodestrutivas, de difícil identificação com o público. Características que criam uma barreira de empatia, superada pela já citada qualidade do elenco, e também pelo modo sem julgamentos com o qual Boyle expõe estas figuras, mostrando suas ações e consequências sem estabelecer limites de certo e errado.
Por fim temos outro importante e influente elemento, a trilha sonora, que vai de Iggy Pop ao grupo Underworld, cujo single “Born Slippy” se tornou um hit e marca registrada do filme, que também retrata a mudança cultural dos anos 90, quando as festas de rock e as drogas “clássicas” deram lugar à cena da música eletrônica e das drogas sintéticas. Tudo isso faz de Trainspotting um trabalho emblemático de uma época, que apesar de sofrer um pouco com o desgaste de seu estilo muito imitado e da carreira instável que Danny Boyle construiria a seguir, possui um impacto inegável.
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