Crítica
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Sinopse
Jovem atriz que vive com seu namorado músico, Luisa conhece um rapaz de espírito livre. Os três formam um relacionamento baseado no amor sem amarras, isso até um perigo iminente colocar a felicidade deles em xeque.
Crítica
Ambientado às vésperas da fatídica eleição que conduziu Jair Bolsonaro à presidência do Brasil em 2018, Transe é um filme político. Disso não há dúvidas, afinal de contas seus personagens estão completamente imersos nas tensões que marcaram o pleito – na ocasião, a polarização adquiriu contornos agressivos e desesperadores. No entanto, os protagonistas desse longa-metragem elaborado/dirigido conjuntamente por Anne Pinheiro Guimarães e Carolina Jabor estão mais interessados no próprio discurso do que em compreender a complexidade do cenário. Luisa (Luisa Arraes) mora com o músico Ravel (Ravel Andrade), mas passa uma noite reveladora na companhia de Johnny (Johnny Massaro), citando platitudes cósmicas e tendo viagens intelectuais sobre a existência da matéria de acordo com a interatividade. Esses personagens são brancos e privilegiados, a julgar pela possibilidade de deambulação por uma cidade cujo custo de vida cobra um preço salgado demais da maioria de seus moradores. Os três vivem num apartamento com vista para os arcos da Lapa, antigamente o berço de uma boemia característica do Rio de Janeiro. No filme, trata-se do reduto de uma juventude preocupada com os rumos políticos do país, inclusiva, libertária, cultora da arte e contrária aos manifestos de ódio, mas cuja alienação social é tão profunda que diminui os efeitos positivos das jornadas de reconhecimento.
O discurso político de Transe beira o risível em determinados momentos. O trio de personagens principais acredita realmente na possiblidade de transformação do mundo num lugar melhor a partir do exercício de seus privilégios, num culto bem mais do “eu” do que do “nós”. Para Luisa, Johnny e Ravel, política é autoconhecimento, é quebrar barreiras pessoais, não encontrar um denominador comum que os conecte verdadeiramente a uma cadeia mais complexa de pessoas e recortes humanos. Luisa é aquela que passa a trama inteira num processo rasteiro de letramento, aprendendo e se provocando quanto à própria ignorância de classe. Isso poderia ser excelente, desde que houvesse realmente uma conscientização, não apenas lampejos de mudança que pouco resistem à próxima festa na qual os amigos silenciam os candidatos em debate para definir o perfil dos políticos de acordo com seus signos zodiacais. Anne Pinheiro Guimarães e Carolina Jabor não tornam verdadeiramente transformador o momento em que Luisa se desloca à periferia para festejar com sua ex-babá (negra) uma data especial. Talvez por estarem presas demais ao espanto da classe média endinheirada em contato com a pobreza, bem como às evidentes contradições do voto de um negro no candidato racista, as diretoras não enfatizam a inocência de falas como “nós fomos criados juntos”, dita ao filho da ex-empregada.
Ravel é o músico que se expressa por meio das canções de protesto, o homem desconstruído que aceita a inclusão de Johnny no relacionamento e continua num processo de se autodescobrir enquanto manifesta quase ignorância pelas profundezas da realidade. Já Johnny é uma entidade mística, alguém que em determinado momento da trama defende a introspecção por meio de uma viagem psicodélica promovida pelos signos de uma ancestralidade indígena. Desse modo, temos como protagonistas três pessoas que individualizam cada vez mais as suas relações políticas, nem chegando próximas de responder, ou mesmos de serem verdadeiramente afetadas, por questionamentos que surgem ao longo do filme apenas como breves dados de realidade. Numa mesa de bar, em meio a devaneios característicos dessa classe privilegiada que, sem perceber, fomenta diversos preconceitos contra os menos favorecidos que ela jura defender, Luisa é repreendida por uma jovem negra sobre a branquitude dos movimentos “populares” no Rio de Janeiro. Os protagonistas silenciam diante do que é uma verdade constatada pelas imagens factuais do ato #ELENÃO, mas pouco sobra dessa queda abrupta na realidade. A não ser mais um tijolinho no aprendizado íntimo de Luisa sobre a sua própria alienação que deve ser desconstruída em prol das evoluções pessoais. As tentativas de compreender o outro são frágeis.
O que mais incomoda em Transe é a falta de real autoconsciência desses personagens. Eles celebram o amor livre, entre outras coisas fundamentais, em atos de resistência narcisistas nos quais sobressai é o espanto autoelogioso pelo outro não concordar consigo. A câmera passeia de modo despojada pelos ambientes cuidadosamente frugais do apartamento que abriga um amor existente somente como ato político e pouco espontâneo. Num cinema tão acostumado a filmar corpos mecanizados e não fundamentalmente desejosos, o filme de Anne Pinheiro Guimarães e Carolina Jabor explicita bem as diferenças entre o desejar e o querer. Os personagens querem mudar o mundo, pretendem resistir, cantam suas dores em sarais, gritam sua insatisfação antes de descer no ponto do ônibus e se dispõem altruisticamente a conversar com eleitores indecisos. Portanto, são pessoas que agem (às vezes). Mas, com que anseio? Motivados pelo quê? Cientes do lugar ocupado na situação caótica ou apenas satisfazendo uma vontade de manifestar a sua conexão com um progressismo autoindulgente? Progressismo este asfixiado dentro de uma bolha nunca estourada efetivamente, quando muito tornada levemente opaca a fim de permitir enxergar um esboço da realidade além de seus limites? Sobra algo do discurso do jovem negro e periférico que anuncia seu voto em Bolsonaro, assim escancarando a complexidade da situação que jovens brancos/privilegiados simplificam com a ajuda dos astros?
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 3 |
Celso Sabadin | 6 |
Francisco Carbone | 8 |
Alysson Oliveira | 4 |
MÉDIA | 4.5 |
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