float(9) float(2) float(4.5)

Crítica


7

Leitores


2 votos 9

Onde Assistir

Sinopse

Inza Touré nasceu na Costa do Marfim, mas sonha em ir para a Europa, onde acredita que finalmente terá condições de melhorar de vida. Para tanto, está disposto a tudo.

Crítica

Ele próprio um imigrante africano que conseguiu construir sua vida na Europa, o costa-marfinense Joël Akafou relata a trajetória de um dos seus compatriotas em Traverser (Após a Travessia), aquilo que muitos poderiam acusar de ser um documentário dramático, ou um drama documental, dependente da vontade do cliente (ou espectador, no caso). Enfim, trata-se de uma obra situada bem no limite entre o registro da realidade e a reinvenção dessa através de uma leitura ficcional, pois se coloca pessoas reais no centro da ação, ao mesmo tempo as situações nas quais elas se encontram são tão únicas ou ensaiadas que podem ou não terem acontecido de fato. Independente, está mais na proposta de um roteiro declaradamente elaborado um dos maiores charmes desse projeto, cujo resultado vai longe do que se promete no início, o que parece ser mais uma grata surpresa do que uma profunda decepção.

Nos primeiros momentos de Traverser (Após a Travessia), a audiência é colocada diante de um ritual de despedida. A morte do pai é também o adeus do filho, que percebe não ter mais espaço numa África que insiste por lhe virar as costas. O pote de ouro está à sua espera, mas o final desse arco-íris não se encontra nem mesmo no continente que lhe é natal: será preciso atravessar o Mar Mediterrâneo e partir em direção a terras europeias. Uma passagem, como bem sabe, não das mais fáceis, nem feita de maneira tranquila ou organizada. É uma tempestade que se anuncia, e por já ter vivido na pele – e se deparado com tantas outras similares, entre amigos e conhecidos – o diretor reconhece que, por mais singulares que seja, estão nas similaridades que vão se acumulando a sua verdadeira identidade.

É por isso que, assim como já anuncia no título nacional, Traverser é mais sobre o que acontece ao protagonista depois da sonhada jornada do que as amarguras pelas quais se vê obrigado a lidar durante a sua realização. Inza Touré é um personagem sui generis, um rapaz de pouco mais de vinte anos que sonha com a vida prometida no cinema, na publicidade e nas redes sociais, e está disposto a fazer o que for necessário para alcançá-la. Desde que, é claro, esteja no lugar certo. É por isso que se identifica como um atravessador, alguém insatisfeito com o que agora está a seu alcance e motivado a ir atrás de uma nova condição e possibilidades. Dando um passo após o outro, está determinado a não se dar por realizado até completar o caminho ao qual se comprometeu tanto na última conversa com o pai como nos relatos diários que tenta enviar à mãe, a que ficou para trás e que tanto aposta no sucesso do filho.

Porém, se o filme num primeiro momento se anuncia como o relato de um refugiado africano em busca de melhores condições de vida, aos poucos, durante os seus pouco mais de 70 minutos de duração, vai se transformando em uma outra coisa, tão surpreendente quanto inesperada. Touré é homem, é jovem e, assim como muitos como ele, acredita que o mundo lhe deve, como se não fosse necessário esforço para conquistar o pouco que lhe convém. Por isso, usa das ferramentas a seu alcance para ir cumprindo cada uma das suas metas. Da saída da Costa do Marfim até a chegada na Itália – uma sub-Europa, pelo que se entende a partir das suas impressões – até a ida para uma sonhada França, mais imaginada do que realista, o principal recurso empregado por ele será suas artimanhas de conquista. Do convencimento materno, que esgotou os recursos familiares para lhe oferecer um mínimo de condições para a viagem, até as mulheres que vai envolvendo em supostos romances, acabará se vendo num emaranhado de relações que, a despeito de alcançar ou não a meta a que se propõe, mais interessante será acompanhar os desenlaces dele com essas a quem fica devendo favores e promessas não cumpridas.

Joël Akafou faz um cinema simples, objetivo em seu olhar, que vai direto ao ponto e não busca amenizar os fatos que registra. É por isso que Traverser (Após a Travessia) tem tanto a dizer pelo muito que entrega além de uma anunciada linha narrativa. Justamente por ser tão igual aos outros, Inza Touré termina por ser fascinante tanto pelos (poucos) acertos como também pelos (muitos) erros que vai cometendo pelo caminho. E quando colocado diante de figuras de autoridade – como na primeira tentativa, frustrada, que empreende rumo à França – tudo o que lhe resta é um cruzar de braços e um silêncio ensurdecedor. É o retrato de uma geração que exige o que lhe foi prometido, ainda que não esteja disposta a fazer o necessário para lhe ter o que acredita ser seu por direito. Seria apenas triste, se não fosse assustadoramente patético.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *