Crítica


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Sinopse

Ladybug é um assassino de aluguel que deseja fazer um último trabalho depois de uma maré de azar. No entanto, essa missão derradeira coloca em seu caminho uma gama enorme de matadores com habilidades bastante letais.

Crítica

Você já viu esse filme antes. Agora, se foi melhor ou não da outra vez, essa é uma conclusão que dependerá exclusivamente de cada espectador. Afinal, Trem-Bala possui elementos suficientes tanto para um lado quanto para outro, para a felicidade daqueles que se permitirão levar por uma trama tão inverossímil, quanto envolvente, como também deverá servir de combustível para os que sentirão mais o tormento de uma jornada que dá tantas voltas, sem aparentemente sair do lugar e, no final, deixar claro ter chegado a destino algum. Ou seja, a diversão aos que se deixarem aproveitar está mais no durante do que no depois, ou mesmo no antes, quando qualquer eventual expectativa se mostrará injusta frente aos tantos desdobramentos e reviravoltas que o enredo elaborado a partir do best seller de Kôtaro Isaka irá propor. É pelo caminho percorrido, e não pelos argumentos que teriam motivado o percurso ou menos ainda pelo saldo imaginado em sua conclusão, que mostrará seu valor. O típico caso da embalagem tão atraente que terminará por disfarçar o sabor requentado do conteúdo.

Mais interessante do que se ater ao roteiro escrito por Zak Olkewicz (Rua do Medo 1978: Parte 2, 2021) é imaginar as conexões que levaram às condições até que Trem-Bala pudesse ser feito. Se em Cidade Perdida (2022), aventura cômica estrelada por Sandra Bullock e Channing Tatum, Brad Pitt faz apenas uma participação especial, é o contrário que se vê dessa vez: Pitt é o protagonista, enquanto que tanto Bullock quanto Tatum aparecem minimamente, apenas para conferir um charme a mais ao produto final. O galã vencedor do Oscar por Era uma vez em... Hollywood (2019) deixa de lado o viés sério e intenso de seus últimos trabalhos para oferecer um tipo próximo de obras mais leves de sua filmografia, como Queime Depois de Ler (2008) e Sr. & Sra. Smith (2005). Ladybug (ou Joaninha, em tradução direta) é um assassino de aluguel que, a despeito de seu codinome, acredita estar amaldiçoado por um eterno azar que o acompanha a cada nova missão. Não que isso desmotive sua empregadora (voz de Bullock, presente na maior parte do tempo quase como uma narradora). E o serviço, ao menos dessa vez, parece ser simples: entrar em um trem-bala (!) durante uma viagem de rotina e roubar uma maleta do compartimento de bagagens. Entre os tantos passageiros com os quais irá se deparar, um que responde por uma das melhores piadas da trama é, justamente, Tatum.

Mas se os dois colegas são quase notas de rodapé, aqui presentes para devolver o favor que o galã os prestou antes, outras ligações também se manifestam. David Leitch se tornou conhecido em Hollywood ao dirigir longas que alcançaram uma repercussão maior do que seus investimentos, como John Wick: De Volta ao Jogo (2014), feito em parceria com Chad Stahelski, e Atômica (2017). Porém, foi seu projeto seguinte, Deadpool 2 (2018), que mudou de vez seu status na meca do cinema. Na adaptação do anti-herói dos quadrinhos estrelada por Ryan Reynolds e Zazie Beetz, quem fazia uma aparição mínima, no estilo ‘piscou-perdeu’, ainda que marcante? O próprio Brad Pitt! Pois quando Leitch decide resgatar os maneirismos visuais, a edição frenética e uma trama repleta de idas e vindas, como um quadro que vai ganhando sentido diante da audiência, ao mesmo tempo em que o escolhe como veículo de um dos maiores astros do momento, quem também é resgatado para inserções discretas, porém pontuais – e reveladoras? Reynolds e Beetz! É um quebra-cabeças, uma ação entre amigos na qual, quanto mais, melhor. Mesmo que por um ou outro momento tais uniões e reencontros sirvam como desculpa para colocá-los juntos em cena, ao invés de propor o desenrolar de uma ação cujo propósito ficou perdido pelo caminho.

A brincadeira se dá também no nível entre sorte e azar. Se Ladybug é azarado – o que nem sempre se comprova, afinal, como lhe é dito em mais de uma ocasião, tudo é questão de ponto de vista, pois o copo pode estar “tanto meio cheio como meio vazio” – Prince (Joey King, se distanciando com efeito da mocinha virginal dos tempos de A Barraca do Beijo, 2018) é a herdeira do crime que a todo instante conta com uma impressionante dose de probabilidades a seu favor, e os embates entre eles também são diversos o bastante para justificar essa dualidade. Além deles, estão também no trem em movimento – quase tudo que se vê em cena ocorre dentro dos vagões – os gêmeos (!!) Limão (Brian Tyree Henry) e Tangerina (Aaron Taylor-Johnson), dois capangas mortíferos que não podem perder de vista nem a cobiçada maleta, muito menos o filho de um poderoso mafioso (Logan Lerman e Michael Shannon, respectivamente), que foram encarregados de levar de volta para a casa. O Ancião (Hiroyuki Sanada, de 47 Ronins, 2013) e Kimura (Andrew Koji, de G.I. Joe Origens: Snake Eyes, 2021) entram em cena com outra história envolvendo pais e filhos, o que reforça o sentimento de paternidade perdida que percorre os acontecimentos do início ao fim. Quem, de fato, é responsável por tantos desdobramentos, e quais os que sofrerão as consequências destes atos?

Com tanta coisa se passando, não apenas simultaneamente, mas tanto antes como depois, acompanhar a lógica que deveria servir de elo entre os eventos perseguidos em Trem-Bala se mostra uma missão tão ingrata quanto infrutífera, uma vez que a preocupação com o desenvolver uma narrativa tradicional, com início-meio-e-fim, é frágil, enquanto que apostar nas impressões provocadas pelo registro assumido e nas particularidades que cada uma destes personagens agrega ao todo é que ganha força. Brad Pitt se confirma tão afiado quanto nos melhores momentos de sua carreira, e todos que por ele passam deixam em evidência também estarem se divertindo tanto quanto as figuras que defendem. O melhor, porém, é que o sentimento não se restringe à ficção ou aos bastidores, pois o produto que geram é tão coeso e desprovido de vergonha que não se deixar levar pela montanha-russa proposta exige mais do que embarcar em tantos e envolventes absurdos. É cultura pop reciclada, e ninguém faz a menor questão de disfarçar as engrenagens que tornaram o conjunto possível. Essa honestidade, portanto, é que faz do passeio, se não inesquecível, ao menos curioso o bastante para justificar a viagem.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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