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Crítica


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Sinopse

Um afegão que se casou recentemente, morador de um campo de refugiados, luta para conciliar suas responsabilidades familiares com o sonho de se alistar no exército.

Crítica

Depois da demonstração de afeto em forma de duas canções oferecidas por Shaista à sua esposa Benazir, há o desenho do contexto desfavorável em que o casal está. Então, mais do que rapidamente, temos um deslocamento de registro: sai o teor romântico entre dois apaixonados e entra a situação caótica no acampamento para desabrigados onde ambos moram. Desde então, o poder de síntese de Três Canções para Benazir aparece como um dos pontos fortes desse documentário de curta-metragem indicado ao Oscar 2022. Cada imagem ou palavra contém uma carga considerável de informação sobre os personagens, bem como a respeito da situação sócio-política em que eles são obrigados a viver. Uma vez que sabemos da gravidez de Benazir, o panorama ganha complexidade. Afinal de contas, o protagonista é um rapaz sem perspectivas de trabalho, prestes a se tornar chefe de família numa sociedade que enxerga o homem como provedor. O cinema já nos apresentou inúmeras histórias em que a paixão entre jovens se torna um sinônimo de esperança. Na contramão, aqui há a desesperança.

A tragédia de Shaista não diz respeito apenas ao presente marcado pela moradia improvisada, mas principalmente à pressão que o futuro exerce constantemente. Ele precisa pensar em alternativas ao não conseguir emplacar um negócio de venda de tijolos. “Quem vai comprar isso?”, indaga o amigo de passagem que deixa implícita a noção de que os tijolos são para construir e poucos ali têm condições de edificar qualquer coisa. Enquanto segue o protagonista pelas vielas do acampamento, a câmera registra aspectos vitais do cotidiano, tais como a precariedade do lugar apinhado de gente e sem infraestrutura básica, as tradições sendo mantidas pelos mais velhos e o constante clima de vigilância. Os diálogos de Shaista revelam que, de um lado, aquela gente é castigada pelos extremistas do Talibã, e, do outro, se sente invadida pela supervisão dos norte-americanos que aparecem como salvadores da pátria. O dirigível flutuando sobre a cabeça dos miseráveis é uma imagem que carrega múltiplas camadas e significados. A opressão exercida pelo suposto benfeitor é outra faceta dessa miserabilidade.

Três Canções para Benazir tem como outro trunfo a natureza encantadora do personagem principal. Shaista é visto como um sujeito que ainda se permite sonhar em meio àquilo tudo. Disposto a não voltar às plantações de papoula – uma das únicas ofertas de trabalho na região –, ele está decidido a se alistar no exército. Mais um dado dessa tragédia pessoal que espelha a condição do povo: ele tem apenas duas alternativas viáveis e ambas pressupõem riscos. Não querendo estar próximo de opiáceos que poderiam viciá-lo e comprometer a sua saúde, o jovem prestes a se tornar pai e chefe de família acredita ser honroso se juntar às forças armadas. No entanto, fica implícito/óbvio que, num país em guerra, utilizar o uniforme camuflado é uma das atividades mais perigosas. E dentro do mencionado poder de síntese alcançado pelos cineastas Elizabeth Mirzaei e Gulistan Mirzaei, o alistamento de Shaista se transforma em outra pequena jornada reveladora. Isso, pois a pouca escolaridade do afegão se torna barreira para uma eventual carreira militar. Um rapaz pobre e semianalfabeto que deverá ser usado como escudo.

Ao decidir seguir uma carreira militar, Shaista se depara com a precariedade de sua condição de semianalfabeto. Ao ponto de não conseguir preencher o formulário para o alistamento. Isso causa uma dependência angustiante da vontade dos mais velhos, dos que discordam de sua decisão. Mesmo que tente manter um sorriso no rosto, sintoma da resistência mais afetiva que ideológica, o protagonista de Três Canções para Benazir é novamente transformado numa vítima da própria vulnerabilidade. Sem possuir instrução formal, fica a mercê dos demais e vê sendo ainda mais reduzidas as escassas alternativas. Não perdendo de vista o dirigível norte-americano que monitora os moradores do acampamento, Elizabeth Mirzaei e Gulistan Mirzaei mantém o dedo apontado para o céu como um gesto de responsabilização. No fim das contas, na luta entre Talibã e o exército afegão – temperada pela influência político-bélica estadunidense –, quem sofre são os cidadãos comuns como Shaista e Benazir. Dois amantes que são obrigados desde a mais tenra idade a se despojar de ideais românticos para enfrentar uma vida feita de obstáculos e privações. E o filme traça bem esse painel de opressões.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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